51 – Sobre malhas urbanas quadriculadas.

A organização dos assentamentos humanos apresenta diferenciações conforme, ao menos, contextos geográficos e históricos. A conformação de espaços coletivos, públicos, também decorre de diferenciações. Vielas em cidades medievais, vielas em favelas brasileiras durante o século XX e ruas em cidades estadunidenses durante o século XX exemplificam espaços decorrentes de diferenciações. A racionalidade subjacente à conformação desses espaços considera esses contextos geográficos e históricos. Circunstâncias bélicas presentes durante a Idade Média são distintas das circunstâncias logísticas vivenciadas durante o século XX, as quais abrangiam práticas cotidianas de trabalho distantes das residências.

Ainda que o termo “urbanismo” tenha sido cunhado durante o século XIX (CHOAY, 1980, p.3; LIMA, 2002; DEBRASSI, 2006, p. 14), a ocorrência de práticas de organização do meio urbano é perceptível desde ocasiões anteriores e em contextos geográficos diversificados. Ching e Eckler (2014, p. 38), ao discorrerem brevemente sobre a evolução do pensamento arquitetônico durante os séculos XV e XVI, observam que houve “a emergência de uma nova onda de urbanismo global”. Ao discorrem sobre o desenvolvimento da arquitetura durante o período histórico denominável “história antiga”, esses autores, Ching e Eckler (2014, p. 19), retratam um croqui da “planta da cidade de Luoyang, China, cerca de 1000 a.C.”, no qual é perceptível a malha quadriculada presumivelmente intencional. Mumford (1998, p. 87) pontua que “o plano regular de ruas” é detectável em assentamentos humanos datados de aproximadamente 3000 a.C., 4000 a.C., localizados na mesopotâmia e adjacências. Como exemplo, são citados Mohenjo-Daro, Ur e Lagash.

Dentre o teor da obra literária “A Regra e o Modelo: sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo”, Choay (1980, p. 17) relata que a “planta em reticulado” foi inventada pelos milésios (povo natural de Mileto, cidade grega), não havendo, entretanto, registros escritos especificamente dedicados à organização espacial das cidades. Hertzberger (1991, p. 122-125) afirma que “o princípio de ordenamento mínimo da cidade por meio de uma grelha é conhecido desde que se inventou o planejamento urbano”, sendo improcedente a consideração de que o “sistema de grelha” dificilmente evita monotonias funcionais, visuais etc.. Reconhecendo que essas monotonias podem vir a ser materializar, esse autor discorre sobre o projeto feito por Cerdà relativamente à expansão de Barcelona, na Espanha, em meados do século XIX, e sobre o traçado urbano de Manhattan, nos Estados Unidos, e sustenta que, “numa extensão gigantesca de edifícios, os aspectos negativos se tornam secundários”.

Dentre as considerações que embasaram esse projeto feito por Cerdà relativamente à expansão de Barcelona, Debrassi (2006, p. 96) observa o reconhecimento de que a malha quadriculada, enquanto traçado urbano, “reúne vantagens de circulação com vantagens topográficas, construtivas, jurídicas e urbanísticas superiores a qualquer outro”. Essa autora relata, também, que o “sistema de quadrícula” foi empregado pelos gregos entre os séculos X e VI a. C. e, posteriormente, pelo Império Romano, destacando-se que, “sob o ponto de vista urbanístico”, as cidades romanas mantiveram “refinamentos técnicos: esgotos, aquedutos, água corrente, balneários, pavimentos, serviços de incêndios, mercados etc.” (DEBRASSI, 2006, p. 50). Em paráfrase breve, mantiveram elementos de infraestrutura urbana e elementos dedicados à prestação serviços e ao exercício de atividades econômicas.

Observo que os traçados urbanos representados pelas expressões “sistema de quadrícula” (DEBRASSI, 2006, p. 96), “malha quadriculada” (CHING e ECKLER, 2014, p. 19), “planta em reticulado” (CHOAY, 1980, p. 17), “sistema de grelha” (HERTZBERGER, 1991, p. 122-125) não se limitam à forma geométrica “quadrado”, mas abrangem triângulos, retângulos, círculos e, também, polígonos de formato irregular. A compatibilização dessa malha com elementos do relevo enseja ajustes e adequações. A sobreposição de malhas diagonais a malhas quadriculadas também enseja adequações. Barcelona, na Espanha, e Belo Horizonte, no Brasil, exemplificam sobreposições. Praças em topos do relevo e avenidas lindeiras a cursos d’água exemplificam ajustes a elementos e circunstâncias do relevo. Passíveis de compatibilização com a diversificação de funções viárias trazida pelo pensamento moderno, essas malhas tem estado presentes em práticas, durante o século XX, de planejamento urbano e de organização das cidades. Brasília, no Brasil, é um exemplo arquetípico.

Malhas urbanas quadriculadas estão presentes em recortes temporais e em recorte territoriais diversificados. Não são compatíveis com qualquer tipo de sítio. Não representam soluções absolutamente virtuosas. Ainda assim, têm a contribuir favoravelmente à organização de cidades ou, ao menos, de partes delas.

 

Referências bibliográficas:

CERDÀ, I.. Teoria general de la urbanización, y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona. Imprenta Española, 1867.

CHOAY, F.. A regra e o modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985. 334 p. Título original em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme.

DEBRASSI, T. M. F. B.. Paradigmas e teorias da cidade: das reformas urbanas ao urbanismo contemporâneo - o caso de Barcelona. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, 2006.

HERTZBERGER, H.. Lições de Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduardo Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Students in Architecture.

LIMA, J. A. de A.. Urbanismo como ciência, técnica e arte: sua política e sua proteção legal. Arquitextos. São Paulo, ano 03, ago. 2002. Disponível em <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.027/760>. Acesso em 04/08/2020. Acesso em: 01 jun. 2019. ISSN 1809-6298.

MUMFORD, L.. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. R ed., Trad. Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 742p. Título original em inglês: The City in History: Its Origins, Its Transformations, and Its Prospects.

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