07 - Compreensão e aprendizado urbanísticos.
O termo “urbano” é mais
abrangente que o termo “urbanístico”, embora sejam empregados, não raro, sem
distinções entre si. A tradução do trabalho literário de Zevi (1984) abrange
esse termo “urbanístico”, destacando-se, por exemplo, que é distinto “o espaço
exterior, ou urbanístico, do espaço interior, propriamente arquitetônico”
(ZEVI, 1984, p. 41). No Direito Brasileiro, fala-se do “Direito Urbanístico”
(AGUIAR, 1996; LIRA, 1997) mais do que do “Direito Urbano”. Ao longo do
trabalho literário de Jacobs (1961), traduzido para o português, têm-se
expressões como “planejamento urbano”, “diversidade urbana”, “estudos urbanos”
e “vitalidade urbana”, mas também “plano urbanístico”, “pensamento urbanístico”
e “teoria urbanística”. A legislação firmada sob a égide desse “Direito
Urbanístico” fica representada pela “legislação urbanística” (AGUIAR, 1996;
MARICATO, 2000) e não pela expressão “legislação urbana”. Interpreto que a obra
literária de Corrêa (1989), intitulada “O Espaço Urbano”, abrange tanto o
“espaço urbanístico” quanto o “espaço (...) propriamente arquitetônico”
distinguidos por Zevi (1984, p. 41). Entendo que a compreensão e o aprendizado
referentes à crítica de temas urbanísticos podem abarcar temas urbanos. Jacobs
(1961) percebe relações entre a segurança e aspectos urbanísticos. O tema
“violência urbana” possui interfaces com legislações e parâmetros urbanísticos,
sendo incomum a discriminação “violência urbanística”.
Choay (1980, p. 09-10) percebe
que há dissociações entre obras escritas e obras construídas, mesmo havendo
influência dos escritos teóricos de um arquiteto(a)-urbanista sobre os projetos
feitos por esse arquiteto(a)-urbanista. Essa autora expõe que o delineamento
das “relações suscetíveis de ligar os escritos instauradores (da disciplina “urbanismo”
ou “ciência urbanística”) a espaços de fato realizados” pode ser prejudicado
por atenções demasiadamente dedicadas às obras construídas, atenções que
ocasionam leituras limitadas das obras escritas. Considero, assim, que a
interpretação de textos é diferente da interpretação dos espaços relacionáveis
a esses textos. Não raro, a História é retratada por discursos dominantes.
Através da literatura e da arquitetura, nuances das narrativas desses discursos
se fazem presentes.
Dispondo do termo “embelezar”,
o discurso propagandístico predominante na administração da cidade do Rio de
Janeiro, no Brasil, na segunda metade do século XIX, criou “uma nova fisionomia
arquitetônica para cidade” (VILLAÇA, 1999, p. 193). Indo além da “imposição de
novos valores estéticos”, foram cumpridas “múltiplas ‘estratégias’, como a
“erradicação da população trabalhadora que residia na área central” e a mudança
de funções dessa área central em atendimento, “num plano imediato, aos
interesses especulativos que cobiçavam essa área altamente valorizada e, num
plano mais geral, às exigências da acumulação e circulação do capital comercial
e financeiro (ibidem). Segundo esse autor, “razões ideológicas ligadas ao
‘desfrute’ das camadas privilegiadas” e razões políticas relacionadas à
qualificação da cidade do Rio de Janeiro como sede do poder político do Estado
republicano brasileiro também perpassaram essas estratégias. Esse autor chega a
observar que a significação atribuída ao termo “geral” durante a segunda metade
do século XIX difere daquela atribuída durante as décadas de 1950 e 1960.
Expressões como “plano geral para o alargamento e retificação” de vias e “plano
de conjunto (geral)”, durante a segunda metade do século XIX, se referiam a
obras dedicadas ao melhoramento de condições higiênicas e à facilitação da
mobilidade, “dando ao mesmo tempo mais beleza e harmonia às suas construções”.
Ciente de que o urbanismo não
se limita ao embelezamento das cidades, mas cuida, em afirmação curta e
simples, da ordenação de espaços habitáveis, observo que, em vista de
circunstâncias geográficas e culturais, o urbanismo tem se prestado a subsidiar
a instrumentalização de assentamentos humanos para que sejam agentes econômicos
inseridos em mercados variados. Belezas e perspectivas monumentais enfatizam a
presença de instituições formais/informais dominantes, como “o Estado e a
classe dirigente capitalistas” (VILLAÇA, 1999, p. 192). O labor de
“proprietários fundiários”, “promotores imobiliários” e “proprietários dos
meios de produção” serve ao “propósito dominante da sociedade capitalista”, ou
seja, à reprodução, à manutenção e ao aprimoramento das relações de produção
(CORRÊA, 1989, p. 12-13). Sem análises pormenorizadas nem julgamentos acerca
desse labor, entendo que espaços urbanos podem ser conformados sob mais de uma
de intenção. Ainda que haja uma intenção predominante, podem surgir outras,
secundárias, colaterais.
Obras escritas, literárias,
teóricas sobre o urbanismo não são forçosamente lidas pelos cidadãos. Esses
cidadãos, porém, são as pessoas que habitam as cidades. A leitura e a
compreensão do espaço urbano e das dinâmicas que ocorrem nesse espaço acontecem
através de vivências, observações, conversas. O aprendizado que cada cidadão
consolida, consciente ou inconscientemente, é o que fica após essas vivências,
observações e conversas. Ao estudar cidades coloniais/históricas brasileiras,
passei a considerar que a compreensão dos espaços urbanos existentes nessas
cidades precisa reconhecer, ao menos, a ascendência religiosa sobre a
racionalidade que balizou a conformação desses espaços. Igualmente, essa
compreensão precisa observar que o sistema viário, em princípio, não se
destinou ao trânsito de veículos automotores. Os materiais de pavimentação,
como cascalhos e pedras-de-mão, comportavam o tráfego de veículos de tração
animal. As características geométricas do sistema viário de outrora, como
concordâncias verticais entre vias, inclinações longitudinais e larguras, não
se mostram idealmente compatíveis com o tráfego vultoso de veículos
automotores. Em vista da difusão do uso de veículos grandes e pesados, se fez
percebida a pertinência de adequações viárias e/ou de restrições de trânsito.
Há muitos espaços urbanos em
nosso planeta. Generalizações acerca das intenções que balizaram e/ou balizam a
conformação desses espaços devem ser criteriosas. Entendo que é variável o
significado atribuído por cidadãos e grupos sociais ao espaço urbano. Para
Corrêa (1989, p. 09), a dimensão simbólica do espaço urbano varia segundo os
diferentes grupos sociais, etários etc.. Observo que uma praça pode ser,
simplesmente, um espaço de socialização, um espaço que não foi idealizado sob
pretensões de ser ressaltada a importância de pessoas ou instituições. Em
sentido oposto, pode haver praças consistentes em espaços vazios circundados
por espaços edificados, sendo intencionalmente enfatizados monumentos ou outros
elementos salientemente localizados nesses espaços vazios. Além de estátuas,
bustos, coretos etc., uma árvore pode exemplificar um elemento saliente. Conforme
circunstâncias locais, travessas podem aparentar pouca utilidade para a
mobilidade urbana. Desconvidativas aos pedestres, visto que a extensão, a
largura e os muros lindeiros podem afastar sensações de segurança, essas vias
podem ter sido idealizadas em vista do escoamento de águas pluviais ocasionado
pelo relevo local.
Destaco, dentre as primeiras
frases do trabalho literário de Jacobs (1961, p. VI), o seguinte relativamente
à percepção das cidades: “Todas as cenas que ilustram este livro nos dizem
respeito. Para ilustrações, por favor observe atentamente as cidades reais. Ao
fazer isso, escute, concentre-se e reflita sobre o que está vendo”. Sem
pormenorizar distinções entre os termos “compreender” e “aprender”, considero
que aprendizados subsidiam compreensões e que essas compreensões, por sua vez,
amparam demais aprendizados. Para compreender e aprender, não basta ver. É
pertinente reparar nos sons, nos barulhos, nos aromas de flores, nos cheiros de
terra molhada, nos cheiros do asfalto molhado e nos odores desconvidativos
etc.. Para compreender e aprender, fica relevante dialogar, discutir, debater.
Cidades não se destinam ao isolamento absoluto, havendo muitos espaços urbanos
de uso comum.
Referências
bibliográficas:
AGUIAR, J. C.. Direito da
Cidade. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1996. 247 p.
CHING, F. D. K., ECKLER, J.
F.. Introdução à arquitetura. 1. ed.. Trad. Alexandre Salvaterra. Porto
Alegre: Bookman Editora, 2014. 421 p. Título original em inglês: Introduction
to Architecture.
CHOAY, F.. A regra e o
modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad.
Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, SP: Perspectiva, 1985. 334 p. Título
original em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture
et de l’urbanisme.
CORRÊA, R. L.. O espaço
urbano. São Paulo, SP: Ática, 1989. 64 p.
JACOBS, J.. Morte e vida de grandes cidades. 1.
ed., 1961. Trad. Carlos S. M. Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 499 p.
Título original em inglês: The Death em
Life of Great Ameriacans Cities.
MARICATO, E.. As Ideias Fora
do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único:
desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.
VILLAÇA, F. J. M.. Uma
contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo
de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo,
1999.
ZEVI, B.. Saber ver a
arquitetura. 6. ed., 1984. Trad. Maria Isabel Gaspar, Gaëtan Martins de
Oliveira. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2009. 286 p. Título original em
italiano: Saper Vedere L’architettura.