50 – Sobre Tratados de Arquitetura e Urbanismo.
Obras literárias cujos títulos
abrangem os termos “tratado”, “’tratados” e afins podem não exemplificar
rigorosamente textos, escritos, manuscritos etc. cujo teor abarca
suficiente e conclusivamente os domínios de conhecimento aos quais são
dedicados esses textos, escritos, manuscritos etc.. Além desses termos
“tratado”, “tratados” e afins, há manuais práticos, códigos, guias de manuseio etc..
Choay (1980) discorre de maneira sistemática e pormenorizada sobre textos,
escritos, manuscritos etc. dedicados ao espaço construído e ao espaço a
ser construído.
Em face da quantidade vultosa
e da diversidade de escritos sobre o espaço construído e a cidade, Choay (1980,
p. 15) opta por delinear duas categorias textuais: os escritos “que veem no
estabelecimento humano um projeto a realizar”, contribuindo para a produção do
espaço construído e sendo denomináveis “textos realizadores”; e os escritos
“que se contentam em transformá-lo (o estabelecimento humano, a saber) em tema
de especulação”, não intentando “escapar ao universo do escrito” e sendo
denomináveis “textos comentadores”.
Dentre os “textos
realizadores”, a autora localiza os “textos instauradores” (ibidem),
denominação cunhada relativamente aos “escritos que têm por objetivo explícito
a constituição de um aparelho conceptual autônomo que permita conceber e
realizar espaços novos e não aproveitados” (CHOAY, 1980, p. 06), ou seja,
cunhada relativamente aos “textos (...) que se propõem escorar e firmar como
teoria os espaços construídos e a construir, (...)” (ibidem). Dentre os
textos “que, desde a origem das cidades, (...) serviram para organizar o espaço
dos homens, os tratados de arquitetura e as teorias do urbanismo constituem
apenas um pequeno subconjunto” (CHOAY, 1980, p. 15). São exemplos de demais
subconjuntos os mandamentos divinos, os éditos dos príncipes, os éditos
comunais, as regras edilitárias e os manuais de construção (CHOAY, 1980, p. 15
e p. 26). Especificamente, a tradução para o português brasileiro da obra
literária de Choay “A Regra e o Modelo: sobre a teoria da arquitetura e do
urbanismo” (CHOAY, 1980) emprega o termo “edito”, mas não “édito”. Interpreto
que esse termo “édito” representa mais precisamente os textos
salientes/relevantes aos quais Choay faz alusões.
Em relação aos “textos
comentadores”, Choay (1980, p. 16) pontua que possuem relevância para a
“elaboração do mundo edificado”, pois moldam a “percepção do espaço” e
subsidiam os “textos instauradores”. Especificamente, essa autora expõe:
“Os
dois conjuntos de textos, o instaurador e o comentador, se comunicam entre si.
Mas, como vimos, sua interação toma vias específicas. Enquanto os tratados de
arquitetura sofrem a influência direta do discurso dos primeiros
arqueólogos-historiadores, as utopias são articuladas sobre o dos primeiros
geógrafos-etnógrafos” (CHOAY, 1980, p. 67-68).
Tratados de arquitetura
postulam uma disciplina específica independente (CHOAY, 1980, p. 28). Entendo
que tratados de urbanismo também. Fundamentados por pensamentos teóricos, os
tratados são “aplicáveis fora do quadro espaciotemporal” em que foram formulados,
não se limitando a situações particulares (ibidem). Choay (1980, p. 32 a
35) observa, porém, que a denominação “tratado de arquitetura” foi empregada em
sentido amplo mormente nos séculos seguintes ao século X, referindo-se a “obras
(literárias) setoriais” ora dedicadas às ordens de colunas gregas, ora
subordinadas a pensamentos religiosos, ora atinentes à caracterização de
fortificações, etc..
Dentre o teor da obra
literária “A Regra e o Modelo: sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo”,
Choay (1980, p. 16) enuncia provisoriamente (05) cinco traços que, em vista da
obra “De re aedificatoria” de Leon Battista Alberti, definem o tratado
de arquitetura: (i) “É um livro, apresentado como uma totalidade organizada.
(ii) Este livro é assinado por um autor que lhe reivindica a paternidade e
escreve na primeira pessoa. (iii) Seu desenvolvimento é autônomo. Não pretende
subordinar-se a nenhuma disciplina ou tradição. (iv) Tem por objetivo um método
de concepção, a elaboração de princípios universais de regras generativas que
permitam a criação, não a transmissão de preceitos ou de receitas. (v) Esses
princípios e essas regras se destinam a engendrar e a cobrir o campo total do
construir, desde a casa à cidade, da construção à arquitetura”. Choay (1980, p.
16) faz referência ao “tratado de arquitetura, do gênero criado por Alberti”,
pois considera que obras literárias anteriores não apresentam esses 05 (cinco)
traços provisoriamente delineados. Choay (1980, p. 37) considera, assim, o
tratado de arquitetura uma produção especificamente ocidental relacionada às
movimentações intelectuais presentes no Renascimento.
Para Choay (1980, p. 19),
somente a obra literária “De Architectura” do arquiteto romano
Vitruvius partilha da “mesma vocação-função instauradora” da obra “De re
aedificatoria”, embora os 10 (dez) livros sistematizados por esse
arquiteto romano não constituam uma totalidade. Segundo essa autora, “cada um
dos quatro últimos (livros, a saber) pode ser dissociado dos demais, de um
lado, e dos seis primeiros, de outro” (ibidem). Essa autora percebe,
também, que há relativa subordinação a tradições religiosas e que a enumeração
de conceitos não chega a constituir um sistema. Essa autora afirma que “o De
Architectura trata do campo da construção em sua totalidade, da casa à
cidade, dos edifícios privados aos públicos e às vias de circulação, todavia o
equilíbrio do conjunto é rompido em proveito dos edifícios sagrados, dos
templos, tal como a tradição o elaborou, e cujo tratamento goza de prioridade
absoluta”. Como conclusão, essa autora expõe que essa obra literária “De
Architectura” não consiste num manual técnico, apesar da estrutura dos
Livros VIII a X; não consiste num tratado relacionado a rituais religiosos,
apesar do teor dos Livros III e IV; nem consiste num “tratado instaurador (de
uma disciplina autônoma), apesar da vontade expressa por Vitruvius de
autonomizar a construção como uma disciplina unitária”.
Considero que os tratados de
arquitetura cuidam de teorias do espaço construído e embasam uma disciplina
autônoma e específica. Não são manuais setoriais dedicados a fins
exclusivamente técnicos e utilitários. Não se limitam a enunciar regras
subordinadas a filosofias políticas específicas ou a demais disciplinas. Choay
(1980, p. 18) observa que “entre os tratados hipocráticos, Do Ar, da Água e dos
Lugares elabora uma verdadeira teoria da escolha dos sítios que racionaliza um
conjunto de observações sobre o regime das águas e dos ventos, a natureza dos
solos, a exposição ao sol”. Choay (ibidem), porém, sustenta que essa obra
literária se limita a cuidar preliminarmente da edificação, subordinando o
tratamento do espaço à disciplina “Medicina”. Em atenção às considerações de
Choay (1980, p. 35), entendo que os tratados de arquitetura autonomizam e
laicizam os saberes abarcados pela organização e pela conformação de espaços
construídos. Relações de dependências entre essa organização/conformação e
religiões compromete o caráter autônomo e laico da atividade construtora.
Além dessa obra “De re
aedificatoria”, publicada durante o século XV e da obra “De Architectura”,
elaborada por Vitruvius no século I a.C. cito a obra literária “Teoria Geral da
Urbanização e a aplicação de seus princípios e doutrinas à reforma e à expansão
de Barcelona”, elaborada por Ildefonso Cerdà durante meados do século XIX, como
exemplo de marco literário referente ao espaço construído e a cidade. Considero
que marcos literários não são sinônimos de tratados, mas podem trazer
elementos, argumentos e argumentações relevantes, ainda que pouco inovadores
ou, até, desprovidos de inovação. O documento “A Carta de Atenas” tanto quanto
a obra “Morte e Vida das Grandes Cidades”, de Jane Jacobs, também apresentam
relevância, no que tange ao urbanismo e planejamento urbano, sendo que Jacobs
(1961) enseja percepções de ressalvas e de limitações relacionadas ao conjunto
de saberes, argumentos e argumentações trazidos por documento “A Carta de
Atenas”.
A leitura e o estudo de
tratados de arquitetura e de tratados de urbanismo oportuniza aprendizados.
Práticas profissionais também. A leitura e o estudo de obras literárias
dedicadas à arquitetura e ao urbanismo, distintas dos tratados de arquitetura e
dos tratados de urbanismo, também. Seja lendo, estudando ou praticando, é
relevante pensar com autonomia e crítica. Mudar de ideia e mudar de opinião não
são atitudes ruins nem demostram inaptidão profissional. Releituras não são
retrabalhos. Diálogos, debates e discussões oportunizam refinamentos e
alargamentos de perspectivas e de compreensões acerca do espaço construído e da
cidade.
Referências
bibliográficas:
A Carta de Atenas. IN:
CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA (CIAM), 4., 1931-33. Trad.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Disponível em: portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201933.pdf.
Acesso em 16/08/2024.
CHOAY, F.. A regra e o
modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad.
Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985. 334 p. Título original
em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de
l’urbanisme.
JACOBS, J.. Morte e vida de grandes cidades. 1.
ed., 1961. Trad. Carlos S. M. Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 499 p.
Título original em inglês: The Death em
Life of Great Ameriacans Cities.