49 – Percepções arquitetônicas: forma e função.

O pensamento modernista, no âmbito da arquitetura e do urbanismo, não fica suficientemente representado pela consideração individualizada de frases e expressões sintéticas como “A forma segue a função”, “Menos é mais”, “Deus está nos detalhes”, “máquina de morar” ou outras que venham a ser explicitadas em obras literárias. Através da historiografia, é possível discernir, no que tange a esse pensamento modernista, tanto escolas diversas relativamente ao pensar e ao fazer arquitetônico quanto escolas diversas relativamente ao pensar e ao fazer pertinentes à organização das cidades.

Entendo que o organicismo detectado no acervo profissional de Frank Lloyd Wright e o funcionalismo detectado no acerco profissional de Le Corbusier apresentam elementos convergentes, como a ausência de ornamentos distintos da essencialidade estrutural, e elementos divergentes, ainda que não antagônicos, como a inserção arquitetônica perante o meio urbano. Em vista das funções urbanas elementares discriminadas dentre o teor do documento “A Carta de Atenas”, concluído nos primeiros anos da década de 1930, percebo que cidades apresentam, conforme setorizações do território, malhas urbanas reticulares, nas quais a construção de monumentalidades chega a preponderar sobre condicionantes decorrentes do sítio, e/ou malhas sinuosas, nas quais o uso residencial e o sistema viário são compatibilizados com o relevo.

É possível detectar no Brasil, durante a segunda metade do século XX e, ainda, as primeiras décadas do século XXI, faces do pensamento modernista. Ao tratar da caracterização, para a finalidade urbanística, do solo, Aguiar (1996, p. 88) ecoa as funções urbanas elementares ao sustentar que o “solo urbano (...) é aquele que possui qualificação urbanística, ou seja, regime jurídico preordenado às funções do urbanismo, como habitação, circulação, lazer e trabalho”. Meirelles (2003) define o termo “urbanismo” como o “conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade” e sustenta que essa expressão “espaços habitáveis” corresponde a “todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro funções sociais: habitação, trabalho, circulação e recreação”.

No âmbito arquitetônico, há, também, a presença saliente do termo “função” e suas variações, pois formas arquitetônicas são pensadas de maneira a acomodarem o suporte necessário às funções exercidas por seres humanos e às funções exercidas em prol dos seres humanos. Essas formas, a princípio, não são aleatoriamente motivadas. Metodologicamente, são delineadas em atenção, ao menos, a programas de necessidades discriminados por clientes e pelas pessoas que frequentam ou frequentarão as arquiteturas a serem materializadas, alteradas, reformadas.

Em sentido divergente da relação entre formas e funções representada pela frase “A forma segue a função”, Hertzberger (1991, p. 98-101) discorre consistentemente sobre exemplos arquitetônicos em que forma e função estão separadas. Esse autor observa que “a mesma forma pode, (...), assumir aparências diferentes sob circunstâncias novas, sem que a estrutura mude de modo essencial” (HERTZBERGER, 1991, p. 102) e que edifícios similares podem se distinguir em vista de interações com o entorno. Esse autor, em seguida, apresenta conclusões das quais destaco o seguinte:

“Não é certamente verdade que há sempre uma forma específica que se ajusta a um objetivo específico. Há formas que não só permitem várias interpretações como ainda suscitam efetivamente essas interpretações. (...);

(...) a forma é capaz de adaptar-se a uma variedade de funções e de assumir numerosas aparências, ao mesmo tempo que permanece fundamentalmente a mesma.

(...) Mudanças de função podem surgir no longo prazo, em poucos anos, em uma estação do ano, uma semana ou diariamente. (...)”.

Em sequência às considerações de Hertzberger (1991), adiciono o que escutei, durante o curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo, de um professor:

“Trinta pessoas diferentes farão trinta projetos arquitetônicos diferentes, ainda que haja o mesmo programa de necessidades e o mesmo terreno. Ao menos, mínimas diferenças acontecerão.”

A amplitude do rol de funções exercíveis em edifícios é detectada por Choay (1980, p. 80), ao estudar a obra De re aedificatoria, de Leon Alberti e relatar a percepção deste autor quanto à evidente “infinita variedade de usos humanos que repercute sobre os edifícios e exige, (...), o estabelecimento de uma classificação”. Hertzberger (1991, p. 126), em relação ao fazer projetual arquitetônico, pontua que “(...) cada edifício bem projetado tem uma ideia coerente, uma unidade temática distinta, uma unidade de vocabulário, material e método de construção”.

Apreendo que, perante funções e/ou usos semelhantes, podem surgir tanto formas arquitetônicas idênticas quanto formas arquitetônicas significativamente diferentes. Estudos e análises de afirmações difundidas e, mesmo, popularizadas devem ocorrer sob critérios que considerem as circunstâncias e os contextos em que essas afirmações foram sintetizadas e refinadas. Essas circunstâncias e esses contextos, não raro, podem apresentar diferenças geográficas, culturais, sociais etc. perante as circunstâncias e os contextos de quem estuda e analisa essas afirmações. Da frase “A forma segue a função”, retenho que formas arquitetônicas surgem em atenção a funções previamente estimadas, delineadas e/ou discriminadas as quais não são perpétuas. Considero, em adição, que formas podem ser idealizadas sem prévias definições específicas de funções, o que acarreta adequações e ajustes pertinentes às especificidades das atividades que venham a ser exercidas.

 

Referências bibliográficas:

A Carta de Atenas. IN: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA (CIAM), 4., 1931-33. Trad. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Disponível em: portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201933.pdf. Acesso em 16/08/2024.

AGUIAR, J. C.. Direito da Cidade. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1996. 247 p.

CHOAY, F.. A regra e o modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985. 334 p. Título original em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme.

HERTZBERGER, H.. Lições de Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduardo Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Students in Architecture.

MEIRELLES, H. L.. Direito municipal brasileiro. 13. ed., 2003. Atualizada por Célia Marisa Prendes e Márcio Schneider Reis. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. 491 p.

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