42 – Gentileza urbana: uma função social viabilizada pela arquitetura.
O direito de propriedade,
outrora individualista e absoluto, está relativizado pela função social da
propriedade e pela função social da cidade. Aguiar (1996), Pires (2005), Braga
(2008) discorrem sobre a consolidação dessa relativização.
No meio profissional da
arquitetura e do urbanismo, a expressão “função social” não é incomum. A
Constituição Federal e a Lei Federal 10257/2001, denominada “Estatuto da
Cidade”, contêm essa expressão. Trabalhos acadêmicos e não acadêmicos fazem,
conforme especificidades e circunstâncias próprias, alusões pormenorizadas ou
breves.
As expressões “função social
da propriedade urbana” e “função social do imóvel urbano” não são, a princípio,
sinônimos. Em linguajar raso e breve, a “propriedade” é o direito de alguém
usar, explorar economicamente, dispor e reivindicar algo. Um imóvel urbano pode
ser usado, ou habitado, pelo seu dono. Esse imóvel pode conter ferramentas,
instrumentos e/ou maquinários para que seu dono exerça atividades econômicas.
Esse imóvel pode ser vendido, alugado, doado, cedido temporariamente pelo seu
dono a terceiros. Se ocupado sem a autorização de seu dono, esse imóvel pode
ser alvo de reinvindicação. O dono, proprietário, diz perante outros: “Esse
imóvel é meu”.
A função social da propriedade
urbana fica cumprida quando o direito denominado “propriedade”, conforme o §2º
do art. 182 da Constituição Federal, “atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Do direito de propriedade,
considero que decorre o direito de construir. Os edifícios construídos, as
casas e os galpões, exemplos de arquitetura, não se materializam somente sob o
querer dos proprietários. Há condições e restrições variadas: áreas de
preservação permanente (APPs) não devem ser desmatadas; a quantidade de área
construída está limitada pelo coeficiente de aproveitamento (CA); há
afastamentos frontais mínimos etc..
Genericamente, considero que a
função social da propriedade urbana fica atendida parcialmente quando
respeitadas as condições e restrições incidentes na edificabilidade dos lotes
urbanos. A razão de existir de um lote é ser edificado ou integrar um conjunto
edificado de lotes. A razão de um edifício existir é ser habitado, utilizado,
visitado. O potencial construtivo de três lotes adjacentes pode ficar
concentrado, através de uma torre, num lote e os demais lotes podem comportar
áreas permeáveis, vagas de estacionamento, espaços de lazer etc.. A
função social da propriedade urbana fica atendida quando o espaço construído
participa das vivências e convivências humanas. Não basta que um lote venha a
ser edificado. Há a necessidade de o edifício ser utilizado.
Observo que a arquitetura pode
ir além do atendimento às condições e às restrições minimamente pertinentes à
edificabilidade dos lotes para fins urbanos. Há funções sociais que não são
representadas por essas condições e essas restrições. Não me oponho ao
cumprimento dessas condições e dessas restrições, porém reconheço que esse
cumprimento não assegura qualidades espaciais notórias, seja na esfera
arquitetônica, seja na esfera urbana.
Hertzberger (1991, p. 33), ao
analisar o portão de entrada e de saída de uma escola primária, sustenta que “a
entrada de uma escola primária devia ser mais do que uma mera abertura através
da qual crianças” entram e saem. Propondo solução perante a essa funcionalidade
simplista, esse autor observa a necessidade de condições de conforto para as
“crianças que chegam cedo” e para as demoram a ir embora para casa. Esse autor,
assim, explicita a relevância de “muros baixos em que se possa sentar” e de
cobertura para abrigo durante chuvas. Reconhecendo que não só crianças habitam
esse lugar, “a entrada”, esse autor afirma que, ao consistir num “local de
encontro para pessoas com interesses comuns”, esse lugar “cumpre uma importante
função social”.
Estimo que a percepção de
gentilezas urbanas prestadas por edifícios seja influenciada pelo entorno
desses edifícios. O ajardinamento de afastamentos frontais fica destacado em
meio a edifícios cujas fachadas coincidem com o alinhamento de lotes. Igualmente,
ficam destacados os afastamentos laterais voluntários em centros urbanos
ocupados por edifícios verticais que compartilham empenas cegas. O Museu de
Arte de São Paulo (MASP) propicia, no nível térreo, vivências plurais sem
discriminações de acesso. Denominado popularmente “vão livre do MASP”, esse
espaço oportuniza alguma proteção durante chuvas e alguma proteção para
encontros e aglomerações quando houver sol intenso. Embora integrante do
terreno ocupado pelo MASP, esse espaço apresenta, em certa medida, essência de
bem de uso comum do povo, pois propício à fruição coletiva como as praças.
Através das gentilezas
urbanas, a arquitetura se põe a favor das funções sociais suplementares àquelas
minimamente delineadas por planos diretores. Objetos arquitetônicos
espetaculares podem não ser gentis, ainda que, sob o senso comum, sejam
bonitos. Gentileza e beleza não se confundem. Não é necessário ser um edifício
esteticamente vanguardista e/ou tecnológico sofisticado para que gentilezas possam
ser espacializadas.
Referências bibliográficas:
AGUIAR, J. C.. Direito da
Cidade. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1996. 247 p.
BRAGA. P. Manual de direito
para engenheiros e arquitetos. Brasília, DF, Senado Federal, 2008. 316 p.
BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. 05 out. 1988. Disponível
em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >.
Acesso em 03 mar. 2024.
BRASIL. Lei nº 10257, de 11 de
julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível
em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
>. Acesso em 03 mar. 2024.
HERTZBERGER, H.. Lições de
Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduardo Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP:
Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Students
in Architecture.
PIRES, L. R. G. M.. Função social da propriedade urbana e o Plano Diretor. 2005, 195 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, 2005.