41 – Percepções sobre as funções sociais da propriedade privada.
A palavra “imóvel” abrange
diversas configurações espaciais. Uma fazenda numa zona rural pode exemplificar
um imóvel composto pela superfície do solo, por benfeitorias edilícias, por
plantações e por instalações pertinentes ao manejo dessas plantações e à
criação de animais. Um apartamento residencial num edifício localizado no meio
urbano pode exemplificar um imóvel autônomo e distinto dos apartamentos
vizinhos. Lotes de terra baldios, integrantes de parcelamentos de solo
aprovados pela Administração municipal, e terrenos indivisos baldios também
exemplificam lotes. Conforme o art. 79 da Lei Federal 10406/2002, a qual
institui o Código Civil: “são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe
incorporar natural ou artificialmente”. Casas, galpões e prédios verticais são
exemplos de elementos incorporados artificialmente. Equiparo o ato de construir
ao ato de incorporar artificialmente.
A instalação de
empreendimentos imobiliários e a operação de estabelecimentos comerciais podem
apresentar repercussões no meio ambiente urbano, sendo exemplos a atração de
veículos pesados, a atração de veículos leves, a atração de pessoas, a geração
de efluentes poluidores etc. Ampliações de casas residenciais, acrescentando-se
um cômodo, apresentam repercussões em vulto diferente daquelas apresentadas
pela construção de edifícios residenciais, comerciais ou misto. Ainda que
invidividualizadamente essas ampliações apresentem repercussões pouco
significativas, o conjunto de ampliações ocasiona o acúmulo de repercussões, o
que adquire vulto significativo. Por exemplo, esses acréscimos, assim como a
instalação de piscinas e o assentamento de “cimento no chão” para
estacionamento de carros, podem reduzir áreas permeáveis relevantes para a
drenagem de águas de chuva.
A expressão “função social”
não é estranha à legislação brasileira, não é estranha ao ordenamento jurídico
brasileiro. O inciso XXIII do art. 5º e §2º do art. 182 da Constituição Federal
de 1988 tratam expressamente da “função social” da “propriedade urbana”. O caput
desse art. 182 cita, além, a expressão “funções sociais da cidade”. Embora essa
expressão “função social” não conste do Código Civil, consta do §1º do art.
1228 (vide o Título III – Da Propriedade – do Livro III – Do Direito das
Coisas) a enunciação de que, em vista da preservação de recursos e elementos
naturais e do patrimônio histórico e artístico, “o direito de propriedade deve
ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais
(...)”.
Em vista do caput do art.
1.228 do Código Civil, interpreto que o domínio de um imóvel é, sob
perspectivas individualistas, caracterizado pela possibilidade de uso, de
fruição, de disposição desse imóvel e de reinvindicação perante terceiros.
Imposições legais de cunho urbanístico ou ambiental que não esvaziem ou anulem
as possibilidades de uso, de fruição, de disposição e de reinvindicação não são
lesões que impulsionem desapropriações. Limitações legais incidentes em imóveis
não podem aniquilar o que caracteriza o domínio sobre esses imóveis.
Conforme disposto no art. 1299
do Código Civil (vide a Seção VII – Do Direito de Construir – do Cap. V do
Título III do Livro III), “o proprietário pode levantar em seu terreno as
construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos
administrativos”. A titularidade dominial de imóveis, assim, não suscita
irrestritamente permissões para a construção, nesses imóveis, de casas,
prédios, galpões etc. Genericamente, devem ser previamente conferidas pelo
órgão municipal competente as construções no meio ambiente urbano. A
confirmação do atendimento às normas legais é necessária para que seja
concedida a licença de construção, recorrentemente denominada “alvará de
construção”. Em linguajar coloquial: “a pessoa não pode fazer tudo o que
quiser, quando quiser, no lote dela”.
Entendo que o alvará de
construção constitui um ato que declara o direito de alguém construir um
edifício específico num lote ou num conjunto de lotes. O alvará de construção
não é um título dominial. O alvará de construção materializa o direito de construir
genericamente enunciado no art. 1299 do Código Civil, assim transcrito: “Art.
1299 - O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe
aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”.
No Brasil, o direito de
propriedade não é, no século XXI, um direito absoluto. As funções sociais da
propriedade urbana e da cidade balizam limitações incidentes nos poderes de
utilização e/ou exploração privativamente vantajosa de imóveis. A ocorrência de
interesse público em imóveis também baliza limitações incidentes na propriedade
desses imóveis. A possibilidade de usar um bem imóvel está sujeita a limitações
de como usá-lo. Para que ocorram usos residenciais, industriais, comerciais,
mistos, hospitalares etc., infraestruturas urbanas e arquitetônicas são
necessárias. Conforme o §2º do art. 182 da Constituição Federal, “a propriedade
urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor”. O ato de construir é, uma vez
conferido pelo órgão municipal competente o atendimento às normas legais, uma
via para que haja compatibilidade entre a utilização e/ou exploração
privativamente vantajosa de imóveis e o cumprimento função social da
propriedade desses imóveis.
Se há função social da
propriedade, há alguma função que não é social, algo voltado à individualização
mais que à coletivização. A propriedade adquire finalidade social quando é
reconhecido que o exercício dos poderes do proprietário não deve ser protegido
apenas para satisfazer aos interesses individuais desse proprietário. Em certa
medida, há submissão do interesse individual do proprietário às exigências do
bem-estar comum.
Entendo que a “ordenação da
cidade” citada no §2º do art. 182 da Constituição Federal abranja, ao menos, a
caracterização (i) de áreas de preservação permanente (APPs), (ii) de áreas não
edificáveis relacionadas a faixas de domínio de rodovias e ferrovias, (iii) de
áreas não edificáveis relacionadas à adução de água, à transmissão/distribuição
de energia elétrica e ao esgotamento e ao tratamento de efluentes, (iv) de
conjuntos urbanos alvos de interesses históricos, culturais e/ou paisagísticos.
O potencial construtivo de
lotes parcialmente coincidentes com APPs considera quantitativamente tanto a
metragem externa às APPs quanto a metragem nas APPs. A implantação do(s)
edifício(s), a princípio, deve ocorrer externamente às APPs. O ato de construir,
assim, está sujeito a uma limitação locacional, mas não a uma redução do
potencial construtivo. Os projetos arquitetônicos, inclusive, podem discriminar
as APPs como áreas permeáveis, o que viabiliza o atendimento a taxas de
permeabilidade recorrentemente exigidas dentre as legislações urbanísticas
municipais.
Fica inviabilizada, não raro,
a utilização plena in loco do potencial construtivo de lotes abrangidos
por tombamentos. Transferências de direito de construir (TDCs) (vide a
alínea O do inciso V do art. 4º do Estatuto da Cidade) oportunizam, em atenção
a regras urbanísticas municipais, a utilização, alhures, do potencial que não
foi consumido pelos edifícios tombados. TDCs evitam que seja aniquilada a
propriedade representada pela utilização de um potencial construtivo previsto
dentre as legislações municipais, mas circunstancialmente inviabilizado in
loco.
Em síntese, percebo o
seguinte:
- A expressão "função social da propriedade" não é sinônimo, a princípio, da expressão "função social do imóvel". A função social da propriedade independe da vontade do dono do imóvel e, em linguajar curto, pode ser representada, ainda que limitadamente, pela discriminação: "deveres, perante a sociedade, decorrentes do ato de ser dono(a) de um imóvel";
- O imóvel é objeto da propriedade, ou seja, o imóvel é objeto dos poderes de alguém relativamente: à utilização; à exploração econômica; à venda, doação, cessão etc.; e, também, relativamente à reivindicação perante outras pessoas;
- Esses poderes ocorrem conjuntamente a deveres. Os deveres não aniquilam os poderes;
- O aproveitamento econômico e a edificabilidade de imóveis não são aniquilados por limitações de cunho urbanístico, ambiental, histórico-cultural etc., mas são condicionados. Se forem aniquilados, cabe debater a ocorrência de desapropriações.
Atitudes individualmente
vantajosas podem nos conduzir a situações coletivamente desvantajosas. Ações
individualmente racionais podem nos conduzir a resultados coletivamente
irracionais. Soluções individualmente confortáveis podem ocasionar cenários
coletivamente desconfortáveis.
Com os poderes do direito de
propriedade, veem responsabilidades pelo exercício desse direito.
Referências
bibliográficas:
AGUIAR, J. C.. Direito da
Cidade. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1996. 247 p.
BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. 05 out. 1988. Disponível
em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
>. Acesso em 03 mar. 2024.
BRASIL. Lei nº 10257, de 11 de
julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível
em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
>. Acesso em 03 mar. 2024.
BRASIL. Lei nº 10406, de 10 de
janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Poder
Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm
>. Acesso em 03 mar. 2024.