40 – Planos Diretores e Leis de Zoneamento
Planos diretores não são leis
de zoneamento. No Brasil, é comum a abrangência de leis de zoneamento por
planos diretores. A legislação urbanística não se limita a leis de zoneamento
nem a planos diretores. Considero, de maneira sintética, que leis de zoneamento
podem ser instrumentos metodológicos para a viabilização da organização do
território. Planos diretores, logo, podem conter dentre suas disposições a
discriminação de zonas urbanísticas, podem enunciar a pertinência de,
posteriormente, serem definidas e delimitadas zonas urbanísticas ou, ainda,
podem não fazer alusões à prática de zoneamento.
O desenvolvimento industrial
havido durante o século XIX e a primeira metade do século XX ocasionou ações
dedicadas à conformação de legislações de cunho urbanístico. Pires (2005, p.
46) sustenta que “os males causados pelo desenvolvimento industrial fizeram
surgir a necessidade de olhar o urbanismo não mais como uma arte de embelezar a
cidade, mas como meio de ordenar os espaços habitáveis”. Benevolo (1967, p.
09-10) observa que, a fim de serem corrigidos “os males da cidade industrial,
foram caracterizadas duas abordagens extremas e distintas: o recomeço, havendo
contraposição da cidade existente às “novas formas de convivência ditadas
exclusivamente pela teoria”, e a resolução de problemas singulares através de
ações isoladas e desconectadas de “uma visão global do novo organismo
citadino”. Em relação a essa segunda abordagem, esse autor identifica a
presença de técnicos “especialistas e funcionários que introduzem na cidade os
novos regulamentos de higiene e as novas instalações e que, tendo de encontrar os
meios técnicos e jurídicos para levar a cabo estas modificações, dão
efectivamente início à moderna legislação urbanística”.
Durante a segunda metade do
século XX, ações do Estado brasileiro foram legitimadas tecnicamente, mas não
popularmente (VILLAÇA, 1999, p. 191). Referindo-se a “obras políticas ou ações
que correspondiam às reais intenções dos governantes”, planos setoriais,
regionais e nacionais, “foram utilizados para justificar obras ou decisões que
eram executadas”. Cristalizações do planejamento urbano (VILLAÇA, 1999, p.
182), planos diretores não foram generalizadamente utilizados para
justificativas, pois descumpridos pelas próprias Administrações locais. Aguiar
(1996, p. 45) observa que planos diretores não têm objetivo estreito de regrar,
isoladamente, temas setorizados como “projetos de edificação”, habitação,
transporte e zoneamento. Especificamente, Aguiar (1996, p. 86) expõe que o
zoneamento cuida da divisão do território municipal em zonas, “para fins de
disciplina de sua utilização, de modo que se compatibilize o direito de
propriedade com a função social que incide sobre ela”, ou seja, o zoneamento
vem regular “a destinação do solo, seu uso e as características das construções
a serem levantadas nele”.
Villaça (1999, p. 177) entende
que o zoneamento é representado por legislações urbanísticas que variam no
espaço urbano. Relatando que dispositivos legais dedicados ao zoneamento foram,
no Brasil, inicialmente desenvolvidos nas cidades do Rio de Janeiro e de São
Paulo durante as últimas décadas do século XIX, esse autor expõe que o
zoneamento não se confunde com o Plano Diretor, “embora não seja raro chamar-se
um plano de zoneamento de ‘plano diretor’” e embora “todo plano diretor – no
discurso convencional – deva incluir um plano de zoneamento”. Especificamente,
esse autor observa que esse zoneamento surgido ainda no século XIX correspondeu
“a interesses e soluções específicos das elites brasileiras”, tendo servido a
“interesses claros e específicos, particularmente os dos bairros da população
de mais alta renda”. Em relação ao zoneamento praticado “recentemente”, ou
seja, praticado durante a últimas décadas do século XX, esse autor pontua que,
“na maioria dos planos diretores brasileiros, o zoneamento aparece apenas como
princípios vagos e não-operacionais”, algo distinto das “leis específicas de
zoneamento, separadas dos planos diretores”.
Em relação ao planejamento
urbano praticado no Brasil nessa segunda metade do século XX, Villaça (1999, p.
182) sustenta que modificações de denominação, modificações de metodologia para
elaboração e modificações de conteúdo se prestaram a manobras pertinentes à
renovação e à manutenção de hegemonias. O exercício de dominâncias em esferas
variadas da comunidade urbana, assim, ficou amparado pelo elemento
figurativamente mais saliente da legislação urbanística: o plano diretor.
Villaça (1999, p. 191), notadamente, observa que a expressão “plano de
melhoramento e embelezamento” veio a ser substituída pelo termo “urbanismo”, o
qual foi substituído pelas expressões “planejamento urbano” e “plano diretor”.
Esse autor, em sequência, expõe que passaram a ser consideradas as expressões
“plano urbanístico” e “plano local integrado”, tendo sido substituídas pelo
retorno dessa expressão “plano diretor”.
Corrêa (1989, p. 12), em
relação aos agentes sociais que fazem e refazem o espaço urbano, ressalta que a
ação desses agentes é balizada por “um marco jurídico que regula a atuação
deles”, retratando os interesses dominantes de um desses agentes. Não sendo
neutro, esse marco jurídico se presta a retóricas ambíguas que amparam
“transgressões de acordo com os interesses do agente dominante”.
Dispondo de analogia própria,
observo que planos urbanísticos não eliminam necessariamente males urbanos. Se
males urbanos são doenças, os planos urbanísticos e as edificações representam
copos a conterem remédios. Um copo pode conter, durante um período determinado,
um tipo de remédio e, durante outro período, outro tipo. Um copo furado não
ajuda a solucionar males. Um copo sem furos ajuda, mas não basta. É necessário
escolher e dosar o líquido desse copo. É necessário escolher e dosar os usos
das edificações e os usos dos espaços compreendidos entre as edificações. Um
copo que continha, outrora, um líquido venenoso, pode passar a conter um
líquido salutar. Em linguajar coloquial, “a diferença entre o veneno e o
remédio é a dose”. Um uso, em si, pode não ser pernicioso para a vizinhança. A
intensidade desse uso ou a maneira como esse uso é exercido pode o ser. No
Brasil, cada remédio tem uma bula respectiva. Não sendo pertinente atos
normativos especificamente relacionados a cada uso e a cada edificação, têm-se
atos relacionados às cidades (vide as alíneas a) e c) do inciso III do art. 4º
da Lei Federal 10257/2001, denominada Estatuto da Cidade). Simplistamente,
planos diretores e leis de zoneamento são bulas redigidas por parte da
população, devendo serem observadas pela integralidade da população. Estudos,
pesquisas e observações criteriosas ensejam a evolução de remédios e de objetos
variados: copos, garrafas, seringas, moringas etc. As bulas evoluem, são
aprimoradas. Planos diretores e leis de zoneamento, também.
Referências
bibliográficas:
AGUIAR, J. C.. Direito da
Cidade. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1996. 247 p.
BENEVOLO, L.. As origens da
urbanística moderna. 1. ed., 1967. Trad. Conceição Jardim e Eduardo L.
Nogueira. Lisboa: Presença, 1981. 168 p. Título original em italiano: Le
origini Dell’Ubanistica Moderna.
BRASIL. Lei nº 10257, de 11 de
julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível
em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm
>. Acesso em 03 mar. 2024.
CORRÊA, R. L.. O espaço
urbano. São Paulo, SP: Ática, 1989. 64 p.
MARICATO, E.. As Ideias Fora
do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único:
desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.
PIRES, L. R. G. M.. Função
social da propriedade urbana e o Plano Diretor. 2005, 195 f. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo,
SP, 2005.
VILLAÇA, F. J. M.. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1999.