37 – Sobre a leitura de leis, decretos etc..

A leitura de leis, decretos, normas técnicas, portarias, deliberações normativas etc. é indispensável às práticas profissionais dedicadas à promoção da regularidade imobiliária. Percebo que essa regularidade pode ser sistematizada conforme segmentos: a regularidade do parcelamento do solo, a regularidade edilícia, a regularidade do uso, a regularidade do domínio. Percebo que esses segmentos são passíveis de subdivisões: o licenciamento de obras edilícias a serem executadas é diferente da regularização de obras e/ou edificações já finalizadas; há o condicionamento da regularidade do uso à regularidade de sistemas e elementos necessários ao exercício desse uso, como a observância a exigências para a prevenção de incêndios, exigências pertinentes à vigilância sanitária, exigências pertinentes à acessibilidade universal etc.. Entendo que a expressão “regularidade ambiental” possui caráter eclético, pois pode, sob circunstâncias diversas, se concentrar em um ou em alguns segmentos da regularidade imobiliária. Áreas de preservação permanente (APPs) podem ser parceladas e gerar potencial construtivo, porém não devem, presumo, ser descaracterizadas. Os impactos ambientais de usos industriais são diferentes dos impactos ambientais da materialização de empreendimentos densamente habitados.

Os atos normativos a serem observados durante práticas profissionais podem se entrelaçar, ainda que fragmentários. A leitura desses atos sem casos concretos em mente pode oportunizar interpretações distintas da leitura empreendida em vista de situações concretas. Leituras e releituras, assim, são necessárias. Diálogos a partir dessas leituras e releituras são relevantes. A diversificação dos leitores de textos normativos propicia reflexões e, também, revisões de intepretações.

Leis e de decretos, genericamente, são textos cujas estruturas abrangem partes denominadas “títulos” compostas por capítulos o quais são divididos em “seções” e subdivididos em “subseções”. O teor de um dispositivo normativo pode ser amplo, tendo sido redigido sem a explicitação de restrições formais. As limitações incidentes na matéria desse dispositivo podem ficar localizadas em dispositivos esparsamente subsequentes. Há a possibilidade, noutra via, de limitações serem abordadas antes do dispositivo que estatui a matéria. Na esfera local, decretos são firmados pela Administração executiva. Em linguajar curto, “quem faz decreto é a Prefeitura”. Distintamente, leis se firmam através de processos que perpassam a Administração executiva e a Administração legislativa. Em linguajar curto, “leis não são feitas somente pelo Poder Executivo, pela Prefeitura, mas também pelo Poder Legislativo, pela Câmara de Vereadores”.

Na esfera do planejamento urbano, discursos dominantes perpassam atos normativos e se expressam através de critérios elitistas de ocupação e de uso do solo. Normas de cunho urbanístico guardam alguma distância da realidade social. Villaça (1999, p. 212), em relação às práticas tecnocratas de planejamento urbano desenvolvidas no Brasil em meados do século XX, observa o seguinte:

“Os planos passam a ser elaborados fora das administrações municipais, fora de suas rotinas, fora dos interesses urbanos da classe dominante. Passam então a despejar sobre a administração uma verdadeira enxurrada de “recomendações”, cálculos, padrões técnicos, modelos a serem seguidos e às vezes (como no caso pioneiro de Agache) muitas leis, que, para serem absorvidos pelos diversos órgãos públicos envolvidos, pressuporiam sua paralisação por vários meses, apenas para que fossem lidos, estudados, debatidos e absorvidos pelo funcionalismo (admitindo-se que não houvesse debate popular)”.

 

Para Maricato (2000, p. 155-162), a ilegalidade urbanística representada pelas favelas brasileiras é “resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui”, não sendo causada por ações “de lideranças subversivas que querem afrontar a lei”. Apresentando “raízes da sociedade patrimonialista e clientelista próprias do Brasil pré-republicano”, esses processos têm abrangido limitações de acesso às moradias regularmente formalizadas, gestões urbanas ineficazes relativamente à promoção equânime do desenvolvimento urbano e legislações urbanísticas ambíguas conjugadas à aplicação arbitrária de normas.

Observo que o emprego de instrumentos urbanísticos e de instrumentos tributários apresenta ajustes e adequações condizentes com variações regionalistas das circunstâncias administrativas, econômicas e políticas. Maricato (2000, p. 160) sustenta que a aplicação arbitrária da legislação urbanística fomenta a “notável desigualdade urbanística” brasileira. Considero relevante distinguir as críticas direcionadas à legislação das críticas direcionadas à aplicação dessa legislação. A aplicação deve ocorrer conforme textos normativos. Uma vez afastadas arbitrariedades acerca da aplicação, insatisfações devem pretender a alteração desses textos.

Entendo que deve ser observada a finalidade social do ato normativo ou, de maneira mais específica, dos dispositivos integrantes desses atos. Enquanto arquitetos(as)-urbanistas, é salutar imaginar criteriosamente qual é essa finalidade. No que tange às normas de cunho urbanístico, há centros de interesse externos à esfera privada individual. Sinteticamente, não impera só o que o proprietário imobiliário quer. Há, sob critérios normativos, principiológicos etc., a subordinação de interesses individuais às finalidades sociais.

 

Referências bibliográficas:

MARICATO, E.. As Ideias Fora do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único: desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.

VILLAÇA, F. J. M.. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1999.

Postagens mais visitadas deste blog

08 - Quando o ambiente construído se torna arquitetura.

05 - Arquitetura e Urbanismo: práticas multidisciplinares.

07 - Compreensão e aprendizado urbanísticos.