35 – Práticas tecnocráticas e de publicidade: desfavores à população e favores a tendenciosidades ideológicas.

A tecnocracia perpassa o planejamento urbano executado no Brasil durante o século XX e suas imediações temporais. Para Villaça (1999, p. 186-187), a ideologia da supremacia da razão embasa a tecnocracia presente durante a segunda metade do século XIX e durante o século XX. Maricato (2000, p. 181), ao discorrer sobre o planejamento urbano praticado no Brasil durante o século XX, faz referência ao “planejamento burocrático e tecnocrático”. Corrêa (1989, p. 12) considera que integram discursos tecnocráticos balizados por ideologias as alegações de que desigualdades socioespaciais desaparecem em virtude de reorganizações do espaço urbano. Em síntese rasa, as soluções para o que é considerado problemático ficam embasadas por argumentos e justificativas rigorosamente racionais.

Villaça (1999, p. 207) observa a desconsideração, no âmbito da elaboração dos planos urbanos desenvolvidos ao longo do século XX relativamente às cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, no Brasil, dos debates, retoques, contestações e aceites rotineiramente presentes em processos de gestão/governança. Em relação ao plano denominado popularmente “Plano Agache”, o qual é referente à cidade do Rio de Janeiro, esse autor afirma: “O plano de Agache vem do espaço portando a luz do saber, num pacote que desaba instantaneamente sobre a administração municipal”. Esse autor faz alusão, ainda, aos “superplanos dos anos 1960 feitos pelos técnicos competentes de fora dos quadros municipais”, trazendo “a idéia de que os problemas da cidade pela ciência e pela técnica serão resolvidos”.

Percebo que são passíveis de debates a discriminação e o delineamento dos “problemas da cidade”. Sob a racionalidade de algumas pessoas e de alguns segmentos sociais, situações podem caracterizar um problema, mas sob a racionalidade de outras pessoas e de outros segmentos sociais, não. Mesmo que a identificação de um problema seja incontroversa, os delineamentos qualitativo, quantitativo e espacial desse problema podem ser alvo de controvérsias. No âmbito do “Plano Agache”, houve dedicação à remodelação imobiliária, a estudos relacionados à infraestrutura urbana, à elaboração de leis urbanísticas, ao desenvolvimento de habitações populares e à viabilização de créditos pecuniários para o desenvolvimento de empreendimentos habitacionais. Villaça (1999, p. 207), notadamente, expõe que:

“(...) Além da parte da remodelação imobiliária, o Plano Agache desenvolve bastante os estudos de abastecimento de água, coleta de esgotos, combate a inundações e limpeza pública. No final apresenta um detalhado conjunto de leis urbanísticas (inclusive de leis federais para atingirem todas as cidades do país) versando sobre loteamentos, desapropriações, gabaritos, edificações e estética urbana. Há também estudos sobre planos de habitação para as classes operárias (com uma política ‘destrutiva’, para as anti-higiênicas, e uma ‘construtiva’, para as sadias e a preços módicos) incluído considerações sobre ‘empréstimos a taxas mínimas’, financiamentos e subvenções ‘a sociedades construtoras, limitando-lhes o rendimento’, e a cooperativas. O zoneamento não é desenvolvido”.

Villaça (1999, p. 208) identifica, além, a exibição de “erudição urbanística”, através de “dezenas de citações em inglês, francês, alemão e espanhol”, a fim ficar evidenciado que esse “Plano Agache” possuía consonância com o conhecimento técnico desenvolvido no exterior. Estimo que o emprego de expressões e citações estrangeiras deva ocorrer sob critérios que primem pela universalização da acessibilidade de leitores, ainda que leigos, a argumentações e justificativas técnicas.

Hertzberger (1991, p. 120), ao discorrer sobre a conformação de espaços construídos em países europeus durante o século XX, pontua que “a consciência dos efeitos repressivos de equiparar as unidades de moradias nos edifícios de apartamentos a sistemas de armazenamento em grande escala alcançou o clímax nos anos 60”. Ainda que haja distâncias culturais, geográficas e técnicas entre as práticas de planejamento urbano em países europeus durante os anos 1960 e as práticas em cidades brasileiras, estendo ao cenário brasileiro, além da década de 1960, a presença da massificação racionalizada e tecnocrática da produção habitacional.

Em atenção às políticas e obras públicas relacionadas às cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro durante a década de 1990, Maricato (2000. p. 165-167) percebe que campanhas publicitárias conseguem trazer vulto universal ao que ocorre em território restrito. Ficções são retratadas à população, mantendo-se centralidades hegemônicas dentre as cadeias produtivas pertinentes à execução de políticas públicas sociais. Os grupos populacionais a quem essas políticas ficam destinadas passam a compor cadeias de consumo e dependência. Discursos sociais eleitoreiros encobrem práticas administrativas antissociais, dedicadas mormente à “cidade oficial”. Investimentos em obras não seguem planos urbanísticos holísticos previamente discutidos e formulados. Pelo contrário, consideram “localizações precisas” e “espaços estrategicamente localizados”, compondo símbolos potencializados pela publicidade e pela mídia. Sob a denominação de “planejamento estratégico”, abordagens fragmentadas reduzem a consumidores as pessoas, os cidadãos, os eleitores.

Maricato (2000, p. 165) observa, especificamente, que:

“a publicidade insistente e a mídia, de um modo geral, têm um papel especial na dissimulação da realidade do ambiente construído e na construção da sua representação, destacando os espaços de distinção. É evidente também que a representação ideológica é um instrumento de poder – dar aparência de "natural" e "geral" a um ponto de vista parcial, que nas cidades está associado aos expedientes de valorização imobiliária. A representação da cidade encobre a realidade científica”.

Estimo que a estruturação de cadeias produtivas em atenção a cadeias de consumo não seja irrelevante. Pelo contrário, Chang (2013, p. 246) considera que a prosperidade das nações possui relação direta com a capacidade de geração de conhecimento produtivo e a capacidade de organização dos cidadãos em empreendimentos significativamente produtivos. A utilização dessas cadeias produtivas, de maneira a serem perpetuadas dependências de consumo, deve ser observada criteriosamente, pois a redução dessas dependências genericamente ocasiona reduções dos retornos financeiros relacionados a essas cadeias produtivas.

Hábitos de consumo e de mobilidade no espaço urbano integram a esfera de ações imediatas tangíveis aos cidadãos. O consumo responsável e consciente é uma expressão de pensamento crítico, algo elementar para que não fiquemos cega e silenciosamente subordinados a práticas e ideologias tecnocráticas, algo necessário para que a população não se reduza a, tomando-se emprestadas as palavras de Maricato (2000, p. 168), “apenas espectadores passivos”.

 

Referências bibliográficas:

CHANG, H.. 23 coisas que não nos contaram sobre o Capitalismo. São Paulo, SP: Pensamento-cultrix Ltda., 2013. 368 p.

CORRÊA, R. L.. O espaço urbano. São Paulo, SP: Ática, 1989. 64 p.

HERTZBERGER, H.. Lições de Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduardo Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Students in Architecture.

MARICATO, E.. As Ideias Fora do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único: desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.

VILLAÇA, F. J. M.. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1999.


Postagens mais visitadas deste blog

08 - Quando o ambiente construído se torna arquitetura.

05 - Arquitetura e Urbanismo: práticas multidisciplinares.

07 - Compreensão e aprendizado urbanísticos.