33 – Ideologias, planejamento urbano e arquiteturas.
O termo “ideologia” é passível
de estudos amplos e aprofundados, estando empregado em domínios de conhecimento
variados. Bosi (2010) considera que, elementarmente, diferentes compreensões
acerca desse termo abrangem o reconhecimento de que as construções de valores,
ideias e pensamentos estão condicionadas, sob maiores ou menores intensidades,
a situações e circunstâncias sociais e culturais. Esse autor observa que a religião
e a cultura são convertidas em ideologias que apoiam, amparam, avalizam poderes.
Em adição, reconheço que a arquitetura e o urbanismo também se prestam a apoiar,
amparar, avalizar poderes.
Kaës (2016) relaciona a
conformação de ideologia(s) a circunstâncias históricas e sociais,
desenvolvendo “a ideia de que, além de suas posições históricas, a posição
ideológica é uma disposição permanente do espírito humano, e de que sua
manifestação corresponde a constantes psíquicas associadas a contextos sociais
bem precisos”. Esse autor observa, notadamente, que ideologias são formadas “cada
vez que o espaço psíquico de um sujeito, de um grupo ou de uma instituição é
ameaçado em seus fundamentos, em seu conjunto de certezas, em suas crenças e
nas representações da causalidade impostas pela visão/concepção de mundo que a
justifica”. Para esse autor, a ideologia, ainda que manifestada sem
“organização sistemática”, “é uma construção sistemática, edificada como defesa
contra a dúvida e o desconhecido”, havendo a pretensão de “fornecer uma
explicação universal e total segundo um princípio único de causalidade”.
Em apertada síntese,
ideologias surgem em oposição às dúvidas e aos questionamentos direcionados às
certezas que fundamentam visões e/ou concepções de mundo, sendo que situações e
circunstâncias sociais e culturais condicionam a construção de valores, ideias
e pensamentos.
Percebo que esse termo
“ideologia” pode se referir a como orientar e organizar ideias e pensamentos.
Esse termo cuida do direcionamento de perspectivas sobre ideias e pensamentos,
de maneira que essas ideias e esses pensamentos (i) se adequem aos interesses,
às intenções, às necessidades e/ou às conveniências de pessoas e/ou segmentos
sociais ou (ii) sejam postos de lado, pois inconvenientes, impertinentes. Não
raro, ideologias abrangem manipulações de informação em prol de interesses
específicos que afastam interesses outros, igualmente ou mais
legítimos/necessários uma vez considerados princípios éticos que abrangem
sensos de coletividade e implicações sociais. Ideologias, assim, podem camuflar
interesses e conveniências sectários(as), particulares.
Em relação aos superplanos
urbanos tecnocratas desenvolvidos em meados do século XX no Brasil, observa-se
que esses superplanos, que não são assumidos por governantes, apesar de
encomendados por eles, são feições de discursos ideológicos (VILLAÇA, 1999, p.
211). Tem-se, notadamente, o planejamento-discurso em que ideologias dominantes
expõem perspectivas de a cidade ser “um organismo econômico e social, gerido
por um aparato político-institucional” (VILLAÇA, 1999, p. 211-212).
Segundo Maricato (2000, p.
174-175), “o ‘planejamento urbano ocupa um espaço mítico na mídia nacional (VILLAÇA,
1999)”, havendo a predominância da consideração de que esse planejamento
abrange suficientemente a “solução racionalizadora para o caos em que se
encontram as nossas cidades”. Detectando que esse planejamento não abrange
conflitos sociais que extrapolam a arquitetura e o urbanos, essa autora
transcreve a seguinte manifestação de Villaça (1999) acerca do “plano-mito”:
"O
planejamento urbano é encarnado numa idéia – hoje nada clara -- de plano
diretor e passa a ser admitido a priori como algo bom, correto e necessário em
si. Adquire - no pIano da ideologia – uma incrível credibilidade e autonomia,
principalmente se lembramos que, a rigor, nas décadas de 1980 e 1990, os
urbanistas mais atuantes já não sabem o que é um plano diretor, tamanha é a controvérsia
entre eles. A ideologia, entretanto, encarregou-se de fazer com que os leigos
não só saibam o que é plano diretor como também lhe atribuam poderes
verdadeiramente mágicos (p. 230)”.
Em decorrência dos planos
urbanos desenvolvidos no Brasil durante o século XX, Maricato (2000, p. 175)
observa que “a rejeição ao plano diretor significou a rejeição ao seu caráter
ideológico e dissimulador dos conflitos sociais urbanos”.
A identificação crítica, no
âmbito do planejamento urbano, de discursos ideológicos hegemônicos e/ou
dominantes possui relevância porque, além de finalidades explicitamente
tratadas, esses discursos cuidam discreta e/ou silenciosamente de finalidades outras,
colaterais, sinuosas, estrategicamente pertinentes à viabilização/priorização
de interesses específicos.
Ideologias utilizam o
urbanismo e demais ciências, a arte e a arquitetura em prol do direcionamento
da compreensão da conformação de realidades. Atribui-se à Michel de Montaigne,
filósofo e escritor francês que viveu durante o século XVI, a frase: “Chacun
appelle ‘barbarie’ ce qui n’est pas de son usage”, cuja tradução recorrente
é “Cada um de nós chama ‘barbárie’ aquilo que não é de seus hábitos”. Percebo
que, nas cidades, a pluralidade social pode ser filtrada por práticas de
planejamento urbano e por arquiteturas. Exclusividades socialmente aceitas
recorrentemente promovidas dentre dinâmicas econômicas e culturais são faces
desses filtros. Em sentido oposto, práticas de planejamento urbano e
arquiteturas podem promover convivências e coexistências. Genericamente, parques
municipais, praças, infraestruturas cicláveis e infraestruturas pertinentes à caminhabilidade
representam elementos pertinentes à promoção de convivências e coexistências.
Especificamente, considero que Museu de Arte de São Paulo (MASP) exemplifica a
conformação de espaço propício a convivências e coexistências.
Assumindo que seres humanos possuem,
ainda que desapercebidamente, ideologias, ficam perguntas a serem respondidas
sob foro íntimo: “Qual ideologia alimentar?”, “Qual ideologia não alimentar?”, “Perante
qual ideologia se opor?” e “Qual ideologia ignorar?”. Através do planejamento
urbano e da arquitetura, essas perguntas podem ser desdobradas, sendo exemplos
perguntas como: “Delimitações geográficas de zonas urbanísticas seguem
critérios técnicos, socioculturais e/ou ambientais ou são balizadas, em maior
ou menor intensidade, por critérios de propriedade imobiliária?”; “A construção
de conjuntos habitacionais representa, por si, desenvolvimento urbano?”; “Como
se materializam, perante os diversos agentes sociais, os efeitos da implantação
de viadutos, tuneis, vias férreas e, mesmo, aterros sanitários?”; “A promoção
da percepção de segurança local ocasionada por condomínios
urbanísticos/edilícios se sobrepõe a restrições de mobilidade urbana e de
visitação a bens naturais?”; e “A implantação de obras de infraestrutura urbana
dedicadas à superação de precariedades ocorre mais intensamente nos meses que
precedem eleições?”
Quem lê o presente texto pode
se encontrar, por exemplo, como: (i) parte interessada de uma aliança
inconscientemente defensiva da percepção de segurança local em detrimento das
restrições de mobilidade urbana e de visitação a bens naturais ocasionadas pela
conformação de condomínios urbanísticos/edilícios seletivamente acessíveis ou
(ii) parte interessada de uma aliança inconscientemente defensiva da mobilidade
e da visitação em face da busca por segurança. A identificação crítica de
discursos ideológicos traz auxílio, ao menos, em prol da conscientização do que
e como são perseguidos interesses específicos.
Independentemente de qual
ideologia seguir, contestar, se opor e/ou ignorar, fica relevante estender às
diversas dinâmicas urbanas o que Chang (2013, p. 235) considera relativamente a
dinâmicas econômicas: “ações individualmente racionais podem conduzir a um
resultado irracional coletivo” (CHANG, 2013, p. 235). Na arquitetura e no
urbanismo, as ações individuais, ainda que pouco expressivas individualizadamente,
ensejam conjuntamente efeitos expressivos. Em linguajar raso, considero que a
diligência perante o que é pouco e/ou pequeno fundamenta diligências perante o
que é muito e/ou grande.
Referências bibliográficas:
BOSI, A.. Ideologia e
contraideologia. São Paulo, SP. Companhia das Letras, 2010.
KAËS, R.. A ideologia é uma
posição mental específica: Ela nunca morre (mas se transforma). Jornal de
Psicanálise, v. 49, n. 91, p. 207-224, 2016.
MARICATO, E.. As Ideias Fora
do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único:
desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.
VILLAÇA, F. J. M.. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1999.