31 – Considerações sobre a natureza do preço de imóveis.
Processos de urbanização
apresentam natureza econômico-espacial e dinâmicas sociopolíticas (FERNANDES,
2012). Nas aglomerações urbanas, há a presença intensa do mercado, sendo
possível associar o termo “Cidade” a centros de produção e consumo nos quais
ocorre a circulação de mercadorias (ROLNIK, 1988, p. 26) e a acumulação de
capital (HARVEY, 2005). Ações do poder público influenciam a produção, a
circulação e o consumo e, em relação ao mercado imobiliário, podem ensejar a
distribuição desigual, inequânime, dos ônus e dos bônus da urbanização. Ações
da sociedade civil também influenciam a produção, a circulação e o consumo.
Corrêa (1989, p. 15) salienta que a propriedade fundiária consiste num
importante elemento do processo de acumulação do capital, sendo que a
“propriedade da terra é pré-requisito fundamental para a construção civil”.
Em relação aos imóveis
urbanos, Lira (1997, p. 113) pontua que “a possibilidade de construir constitui
a essência econômica da propriedade”. Furtado (2004,
p. 53) observa que a valorização de terras é originada pelo “esforço do
proprietário” e pelo “esforço comum”, sendo relevante que haja a devolução à
comunidade da “valorização originada pelo esforço comum, ou seja, que independa
do esforço do proprietário”. Essa autora, notadamente, distingue a valorização
decorrente do esforço da coletividade daquela decorrente de investimentos
públicos e, em convergência com Piza et al. (2004), percebe que
essa expressão “investimentos públicos” abrange tanto a realização de obras
públicas quanto alterações de normas urbanísticas e de classificações de usos. Abascal
e Bilbao (2016, p. 90), em estudo dedicado aos eixos de estruturação e
transformação urbana enunciados pelo Plano Diretor do município de São Paulo
datado de 2014, nos quais é idealizada a conjugação de modos de transporte
coletivo com o aumento do potencial construtivo, alertam acerca da necessidade
de pensamentos críticos, “no que concerne à dinâmica do mercado imobiliário,
(...) sobre os efeitos do Plano Diretor nos preços do solo e dos imóveis
residenciais nos eixos, passíveis de adensamento”.
Aguiar (1996, p. 172) observa
que “a postura tímida do legislador municipal na utilização” de instrumentos de
tributação extrafiscal oportuniza a especulação imobiliária, pois “o mercado
imobiliário beneficia-se, injustamente, em grandes proporções, dos investimentos
públicos em infraestrutura urbana, através da valorização por eles gerada, numa
desumana simbiose de socialização de custas e privatização dos benefícios”. Corrêa
(1989, p. 16) também observa que “investimentos públicos em infraestrutura,
especialmente viária,” ocasionam a valorização de terras, uma vez propiciados
e/ou facilitados acessos a essas terras. Em atenção ao exposto por Villaça
(1999, p. 195), reconheço que o setor imobiliário é um beneficiário do processo
de urbanização, pois infraestruturas urbanas ficam, ora remediativamente, ora
indutivamente, produzidas pelo Estado, mas não pelos promotores de loteamentos.
O Estado assume, em certa medida, o ônus do custeio das condições gerais de urbanização.
Debrassi (2006, p. 49), em
vista das considerações de Goitia (1982), relata que o traçado regular
quadriculado, o qual exemplifica a aplicação de pensamentos racionalistas à
concepção das cidades, “na América do Sul de uma colonização hierárquica,
converteu-se, no século XIX, por um lado, no instrumento para o aproveitamento
máximo dos terrenos, onde a importância igual das ruas pressupunha que todos
fossem igualmente valiosos e, por outro, no principal instrumento dos
especuladores de terrenos”. Observo que dinâmicas sociopolíticas e a natureza
econômico-espacial da urbanização, todavia, afastam essa idealizada “importância
igual das ruas” e das localidades existentes ao longo delas. Para Song (1996),
o valor da terra num local específico é definido pela acessibilidade a
oportunidades econômicas a partir desse local específico. Bocarejo, LeCompte e
Zhou (2013) observam que, dentre os efeitos secundários da construção de
rodovias urbanas, há impactos negativos nos preços de imóveis lindeiros a essas
rodovias. Ratificando Jacobs (1961), reconhecem que “as rodovias podem degradar
as áreas do seu entorno”, seccionando bairros e comunidades. A “importância
igual das ruas”, assim, fica defasada pela distribuição heterogênea e, mesmo,
dinâmica de oportunidades econômicas e pela conformação desigual de vantagens e
desvantagens ocasionadas por circunstâncias locacionais, como (i) a proximidade
a rodovias, ferrovias, aterros sanitários e cemitérios, (ii) a proximidade a
parques, praças, abrigos de ônibus e estações metroviárias e, também, (iii) a
instalação em topos do relevo, em fundos de vale ou em terrenos acentuadamente
inclinados.
Jacobs
(1961) e Bocarejo, LeCompte e Zhou (2013) detectam propensões, em virtude da
instalação/operação de rodovias urbanas, à depreciação de terras. Aguiar (1996,
p. 172) e Corrêa (1989, p. 16-18) detectam propensões, em virtude da
implantação de infraestrutura urbana, à valorização de terras. Observo
que o rol de elementos abrangidos pela expressão “infraestrutura urbana”
extrapola o elemento “rodovias urbanas”. O tráfego ao longo de rodovias pode
reduzir a compatibilidade de imóveis lindeiros com usos capilarizados, como
residências, serviços e comércios de pequeno porte em edifícios de pequeno
porte, porém oportunizam usos de porte vultoso ou a concentração de usos de
pequeno porte em instalações de grande porte.
Ao discorrer sobre a gênese de
bairros em periferias urbanas, Corrêa (1989, p. 18) observa a distinção entre
bairros fisicamente periféricos e bairros socialmente periféricos. Ainda que
fisicamente periféricos, bairros em que a “urbanização de status”
impulsiona a valorização de terras não se fazem socialmente periféricos.
Interações entre proprietários fundiários e o Estado em prol da instalação de
infraestrutura urbana e em prol da obtenção de créditos financeiros para
suporte a essa instalação fomentam, aliadas a campanhas publicitárias,
qualificações da terra inclinadas à valorização. Em relação ao que Corrêa
(1989, p. 30) denomina “grupos socialmente excluídos”, esse autor sustenta que
a insuficiência de renda perante aluguéis e perante compras de imóveis
residenciais faz com que a habitação seja um bem de acesso seletivo, havendo
exclusão correlata à subnutrição, ao desemprego, ao subemprego, a baixos níveis
de escolaridade e à exposição a doenças.
Considero que é inafastável o
reconhecimento de que a terra urbana é comercializável. Percebo que o mercado
formal de terras não é alcançável, tangível, a todos os cidadãos. Como
enfrentar a exclusão em cidades, ou comunidades, nas quais o mercado de terras
promove exclusividades? Percebo, também, que há perguntas cujas respostas não
são operacional nem unanimemente simples.
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