25 – Breves notas sobre a pobreza e a miséria.
Estudos sobre a pobreza devem
ser feitos com reserva, com empatia, criteriosamente. Presumo que a perspectiva
de quem estuda a pobreza seja diferente da perspectiva de quem vivencia ou
tenha vivenciado a pobreza. Ainda que instruídos de maneira objetiva, esses
estudos podem conter parcialidades e subjetividades que limitem aprendizados.
Intencional ou despretensiosamente, esses estudos podem fomentar ideologias e
tendenciosidades. Ficam pertinentes, assim, pensamentos críticos acerca do que
estudiosos expõem e acerca do queremos, mesmo que sem perceber, que seja
procedente. Pode ser que haja constatações pessoalmente desconfortáveis,
incômodas, mas procedentes.
Benevolo (1967, p. 44)
sustenta que, ao ser reconhecida como “miséria”, a pobreza “é vista na
perspectiva moderna como um mal que pode e deve ser eliminado com os meios a
disposição”. Acerca da miséria, Benevolo (1967, p. 44) transcreve Aneurin
Bevan, político britânico atuante durante a primeira metade do século XX:
“Por
miséria, entendo uma consciência geral de privações não necessárias – e esta é
a condição normal de milhões de pessoas na moderna cidade industrial – unida a
um profundo sentimento de desilusão e de insatisfação pela situação local
actual. De nada serve replicar que as coisas sempre estão melhor que outrora.
As pessoas vivem no presente, não no passado. O descontentamento nasce do
contraste entre aquilo que se sabe ser possível e o que efectivamente existe.
Há a universal e justificada convicção de que a grande massa de homens e
mulheres se encontra pior do que poderia estar”.
Para Rocha (2003), no Brasil,
tem sido privilegiada “a abordagem da pobreza do ponto de vista da renda”, de maneira
a esse termo “pobreza” designar um complexo fenômeno genericamente definível
como “a situação na qual as necessidades não são atendidas de forma adequada”
(ROCHA, 2003, p. 9). Reconhecendo que esse fenômeno apresenta caráter
multidimensional e natureza controversa, uma vez que países apresentam
diferenças de níveis de desenvolvimento social e produtivo, essa autora
distingue a expressão “pobreza absoluta” da expressão “pobreza relativa”, ainda
que, para fins empíricos, considere impreciso o limite representativo dessa
distinção.
Segundo Gomide (2003, p. 07):
“A
pobreza é um fenômeno de várias dimensões. Não é apenas insuficiência de renda
para que uma família satisfaça suas necessidades básicas (como moradia,
vestuário, alimentação), mas também a privação do acesso aos serviços
essenciais (educação, saúde, transporte coletivo, por exemplo) e aos direitos
sociais básicos (trabalho, moradia, seguridade social, entre outros).”
Assumindo que “quanto mais
rica a sociedade, mais o conceito relevante de pobreza se distancia de
atendimento às necessidades de sobrevivência”, Rocha (2003, p. 14) verifica
que, num determinado país, um cidadão pode ser considerado pobre e, num outro
país, não. Especificamente, Rocha (2003, p. 17) observa que, “em países de
renda média como o Brasil, com economia urbana e monetizada, mas onde persiste
importante contingente populacional desprivilegiado, a abordagem da pobreza
absoluta ainda é relevante”. Sustenta, em adição, que o caráter
multidimensional da pobreza é tratado de maneira mais enfática ao se estudar a
pobreza a partir das necessidades básicas, mas não a partir da renda. Logo,
“adotar a abordagem de necessidades básicas insatisfeitas significa ir além
daquelas de alimentação para incorporar uma gama mais ampla de necessidades
humanas, tais como educação, saneamento, habitação etc. (ROCHA, 2003, p. 19)”.
Em países onde é considerada relevante a variável “renda” a fim de se medir o
bem-estar, é recorrente o emprego, em caráter complementar, das abordagens da
pobreza a partir da renda e a partir das necessidades básicas (ROCHA, 2003).
Em relação à caracterização da
pobreza mediante diferentes dimensões do bem-estar da população, Rocha (2003,
p. 28) ressalta a pertinência de “indicadores de renda – grau de insuficiência
de renda, desigualdade de renda entre os pobres – como indicadores relativos às
necessidades básicas de educação, habitação, saneamento, acesso a serviços
públicos etc”. Sen (1992) sustenta que a equiparação da pobreza à privação de
satisfações mínimas e elementares permite reconhecer que a pobreza apresenta
tanto aspectos absolutos quanto aspectos relativos. Há, portanto, a
possibilidade de ocorrência de desigualdades expressivas entre cidadãos pobres,
uma vez que “pessoas podem estar um pouco abaixo da linha (da pobreza), ou
muito abaixo (...)” (SEN, 1992, p. 165-166).
Tem-se que o termo “pobreza” é
passível de várias definições, não necessariamente, convergentes. A
consideração unicamente da renda não abrange insuficiências de acesso a
serviços elementares e/ou básicos. Logo, definições que considerem tanto a
renda quanto esse acesso apresentam alguma compatibilidade com realidades em
que a economia é monetizada e há desigualdades socioeconômicas. Gomide (2003,
p. 8) observa o seguinte:
“O
atual processo de urbanização, caracterizado pela ocupação das periferias
urbanas, aumenta consideravelmente a necessidade de transporte e a oferta de
serviços públicos, os quais freqüentemente não suprem a demanda adequadamente.
Como resultado, têm-se os mais pobres segregados espacialmente e limitados em
suas condições de mobilidade”.
A inobservância de um direito
fundamental inviabiliza a observância a outros (PEREIRA, 2016, p. 26). Ascher
(2004, p. 23) observa que, em tradução livre, “o direito à circulação se tornou
uma espécie de direito genérico, do qual derivam numerosos outros direitos
[...]”. Cardoso (2007, p. 110) pontua que “nas grandes cidades, em geral, a
acessibilidade e a mobilidade tendem a ser proporcionais à renda (...)”, uma
vez associadas à propriedade imobiliária, à utilização de veículos privados e à
adoção de políticas públicas de transporte e de uso do solo dedicadas ao
benefício da circulação do transporte individual. Percebo que a implantação de
concepções técnicas direcionadas ao enfrentamento da pobreza depende de
condições políticas e fica sujeita a atenções à situação econômica e à
especulação imobiliária locais/regionais.
Referências
bibliográficas:
ASCHER,
F.. Les sens du mouvement. Modernité et mobilités dans les sociétés urbaines
contemporaines. IN: Les sens du mouvement. Modernité et
mobilités dans les sociétés urbaines contemporaines. Belin, 2004. p.
20-34.
BENEVOLO, L.. As origens da
urbanística moderna. 1. ed., 1967. Trad. Conceição Jardim e Eduardo L. Nogueira.
Lisboa: Presença, 1981. 168 p. Título original em italiano: Le origini
Dell’Ubanistica Moderna.
CARDOSO, L.. Transporte
público, acessibilidade urbana e desigualdades socioespaciais na Região
Metropolitana de Belo Horizonte. 2007. 232 f. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-Graduação do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas,
Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
Minas Gerais, 2007.
GOMIDE, A. A. Texto para
discussão nº 960. Transporte urbano e inclusão social: elementos para políticas
públicas. Brasília, DF: IPEA, 2000. 33 f. ISSN 1415-4765.
PEREIRA. F. L. B.. A
Fundamentalidade do Direito à Mobilidade Urbana. IN Mobilidade
urbana: desafios e sustentabilidade, São Paulo, SP, Ed. Ponto e Linha, v.
2, 2016.
ROCHA, S.. Pobreza no
Brasil: afinal, de que se trata? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 244 p.
SEN, A. K.. Desigualdade
reexaminada. 1992. Trad. Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record,
2001. 301p. Publicado originalmente em inglês. Título original em inglês: Inequality
reexamined.