24 – Exclusão social, pobreza e o transporte público.
Na cidade, não há condições
igualitárias de desenvolvimento. O acesso da população aos bens e serviços
urbanos ocorre desigualmente em virtude, ao menos, de especificidades
geográficas (MENDONÇA, 2002, p. 86-87). O acesso às oportunidades pode seguir
rotas diretamente simples ou meandros a serem superados curva após curva. Cada
pessoa possui uma rota de oportunidades própria, em certa medida pré-existente,
em certa medida construída dia após dia.
A exclusão social e a pobreza
são influenciadas pelo transporte público (CHURCH, FROST e SULLIVAN, 2000;
CARDOSO, 2007; COUTO, 2020). Há outras influências: legislações urbanísticas
discriminatórias (MARICATO, 2000, p. 147) e, em atenção às considerações de
Rocha (2003), a cor da pele, o gênero, origens étnicas, quantidades de filhos
e/ou dependentes, etc.. O transporte público, ainda que não venha a
promover vantagens pessoais, pode atenuar desvantagens retratadas por
limitações de renda e por localizações geográficas.
Percebo que a utilização
vultosa de veículos automotores privados tem degradado ambiências urbanas
locais e onerado difusamente cidadãos, tanto em âmbito local quanto
metropolitano. Estudos relacionados ao deslocamento desses cidadãos subsidiam o
desenvolvimento de políticas públicas dedicadas à qualificação de ambiências
urbanas locais, à promoção da sustentabilidade ambiental e à promoção da
equidade de acesso às oportunidades oferecidas pela cidade (GARCIA et al.,
2018). Lucas (2010), Lobo (2016), Veras et al. (2016) e Andrade (2016)
equiparam essas oportunidades a oportunidades profissionais, de estudos, de
lazer e de prestação/consumo de serviços diversificados relacionados à saúde e
a conveniências funcionais/comerciais.
Lucas (2010) considera que o
transporte de pessoas propicia meios de acesso às oportunidades essenciais para
participação social, tais como oportunidades relacionadas a práticas
profissionais, à educação, a negócios e a demais atividades sociais. Por conseguinte,
considera que deficiências de mobilidade ficam relacionadas a desvantagens e a
exclusões sociais. Litman (2018) apresenta consideração similar e emprega,
especificamente, a expressão “equidade de oportunidades”, a qual consiste no
acesso adequado a oportunidades profissionais e de estudo, independentemente de
desvantagens pessoais/sociais.
Considero que a precarização
da infraestrutura de transporte acentua a vulnerabilidade da população, pois
promove insatisfatoriamente o alcance às oportunidades profissionais e de
superação da pobreza. Essa precarização facilita a exclusão social dos cidadãos
carentes dessas oportunidades. Em decorrência das limitações materiais
relacionadas à distribuição geograficamente heterogênea (i) da prestação de
serviços de assistência à saúde, (ii) da prestação de serviços educacionais e
(iii) das atividades afins ao trabalho/lazer, cidadãos que não sustentam
financeiramente moradias próximas a hospitais, centros comerciais, escolas,
universidades etc. são coagidos a se instalarem distantemente dessas
conveniências funcionais (ANDRADE, 2016; GUZMAN et al., 2017). Conforme Lobo e
Cardoso (2018), segmentos populacionais de baixa renda notadamente residentes
em regiões periféricas têm dificuldades de vivenciar oportunidades de trabalho,
estudo, lazer e consumo, pois não conseguem alcançar regiões diversas da cidade
sem ter de pagar duas ou mais tarifas. Delbosc e Currie (2011) observam que
estudos/pesquisas têm demonstrado que a insuficiência do provimento de serviços
de transporte pode limitar o acesso a atividades sociais e econômicas e, por
consequência, reduzir a qualidade de vida e aumentar a exclusão social.
Lobo et al. (2012) observam a
ocorrência no município de Belo Horizonte, n Brasil, assim como em outras
capitais brasileiras, de precariedades relacionadas à operacionalização da
acessibilidade e da mobilidade urbanas, de maneira a serem geradas situações de
vulnerabilidade social e degradação ambiental. Especificamente, indicam o predomínio
de privilégios dedicados ao transporte individual, em detrimento dos anseios
relacionados à circulação de pedestres, ciclistas e dos cidadãos que utilizam o
transporte público coletivo. Ressalva-se, todavia, que o aprimoramento da
infraestrutura viária o qual privilegie o transporte motorizado individual
gera, em curto prazo, efeitos pontuais e segmentados que, em longo prazo, se
esvaem (BRASIL, 2015; SILVA, 2016). O aprimoramento do transporte público é
diferente do aprimoramento do sistema viário. Costa (2011, p. 27) relata
conclusões de que o aumento da capacidade viária tende a provocar
congestionamentos viários, ao invés de reduzi-los.
Reconhecendo-se que ampliações
viárias e a construção de pontes, túneis e viadutos não asseguram,
necessariamente, a redução da quantidade de acidentes de trânsito, a redução da
emissão de poluentes atmosféricos nem a redução de tempos de viagem (BRASIL,
2015), tem-se que o planejamento e a operação da circulação de pessoas não
devem ser balizados, eminentemente, pela utilização indistinta de veículos
automotores privados (LEIVA, 2006), mas devem ser balizados pela preponderância
dos modos de deslocamento que permitam a essas pessoas a realização
ambientalmente sustentável de deslocamentos cotidianos ágeis, confortáveis e
financeiramente suportáveis.
Possuindo caráter
multidimensional, o termo “pobreza” tem sido recorrentemente relacionado às
expressões “desigualdades socioeconômicas” e “exclusão social”, mas sua relação
com a expressão “mobilidade urbana” e o termo “acessibilidade” não é
impertinente nem irrelevante. A locomoção de pessoas consome parte da renda
familiar e do tempo disponíveis para a realização de atividades sociais,
econômicas etc.. A busca por emprego pode ser, inclusive, frustrada pela
obrigatoriedade de empregadores proverem o transporte de empregados.
Especificamente, a opção dos empregadores por empregados que residam a curtas
ou médias distâncias exemplifica a exclusão social daqueles que residem a
longas distâncias.
Gomide (2003) observa que
serviços de transporte coletivo, se eficientes e garantidores de acesso da
população à totalidade do espaço urbano, podem propiciar a disponibilidade de
renda e de tempo para o acesso a oportunidades de trabalho e aos serviços sociais
básicos (saúde, educação e lazer). Entende, assim, que o transporte coletivo é
um instrumento importante de combate à pobreza e de promoção da inclusão
social. Em sentido convergente, percebo que, através da gestão do transporte
público coletivo, é possível enfrentar a pobreza e atenuar exclusões sociais.
Aumentos dos custos de deslocamento são mais impactantes para quem tem recursos
financeiros austeramente limitados do que para quem tem recursos em reserva. Cardoso
(2007), ao sustentar que as limitações relacionadas à mobilidade são
vivenciadas mais intensamente por segmentos sociais de menor renda, confirma
essa percepção desigual dos impactos sociais do transporte.
Entendo que o enfrentamento da
pobreza e da exclusão social deva abranger, necessariamente, a sustentação de
sistemas de transporte público coletivo geograficamente difusos e tangíveis aos
cidadãos. Entendo que esse enfrentamento também deva abarcar a sustentação de
infraestruturas que efetivamente viabilizem modos não motorizados de
transporte: a pé, de bicicleta, de patins, de patinete, de skate etc..
Os protagonistas da cidade não são os carros, mesmo que elétricos, híbridos,
bonitos, charmosos, potentes etc., mas sim as pessoas, os cidadãos.
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