23 – Considerações sobre a massificação do consumo cultural.
A cultura pode ser
comercializada. Feiras de artesanato, festivais gastronômicos, festivais
musicais e festas populares são alguns exemplos de situações em que a cultura
fica representada por produtos e/ou serviços, ou seja, exemplificam situações
em que há consumo cultural. O vulto desse consumo fica amplificado pela
elaboração em ampla escala dos elementos pertinentes a esses produtos/serviços.
Essa amplificação fica potencializada pela organização racionalizada de linhas
de produção e de distribuição desses produtos/serviços. Para Lefebvre (1968, p.
11), o processo de industrialização, mormente desde o início do século XIX,
impulsiona a transformação da sociedade, induzindo a configuração de “problemas
relativos ao crescimento e à planificação”, a configuração de “questões
referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana” e a “crescente
importância dos lazeres e das questões relativas à ‘cultura’”.
Rolnik (1995, p. 71-72)
observa que a indústria perpassa os diversos aspectos da vida urbana do século
XX, podendo ser representada, por exemplo, pela distribuição de produtos e pela
mensuração do “tempo útil e produtivo” a qual afasta o “tempo para ócio ou
devaneio”. Essa autora, notadamente, ressalta a ocorrência da homogeneização da
sociedade, visto que as subjetividades são preenchidas pela indústria da
cultura. Vestimentas, calçados e aparelhos televisores representam a ocorrência
dessa homogeneização, sendo a “própria TV (...) poderosa máquina
homogeneizadora”.
Na década de 2020, não fica
excêntrico estender esse poder homogeneizador aos dispositivos móveis de uso
pessoal, como aparelhos celulares, tablets, relógios etc. Permanece,
porém, o caráter significativamente racionalizado da divisão dos trabalhos
cujos produtos são oferecidos por meio desses dispositivos. Rolnik (1995, p.
71-72) expõe, em relação à televisão, que os produtos propagandeados e/ou ofertados
decorrem do trabalho que “é divido em milhares de minigestos automáticos: a
fábrica”.
Debrassi (2006), em vista das
ideias e argumentações de Harvey (1992), ressalta, sinteticamente, que a
rejeição aos discursos universais e/ou “totalizantes” característicos da “ideia
modernista” oportuniza o “pluralismo pós-moderno”. Observo que esse
“pluralismo” não afastou a divisão racionalizada de trabalhos, nem representou
desestímulos a massificações do consumo. No prólogo da obra literária
“Disciplina Positiva”, de J. Nelson, publicada em 2015, H. Stephen Glenn
sustenta que a urbanização e a tecnologia, após a Segunda Guerra Mundial,
comprometeram “conhecimentos e recursos no sentido de criar e educar os
filhos”. Entendo que a massificação do consumo cultural ocasiona processos de
organização, reorganização e manipulação racionalizadas de conhecimentos e de
recursos de comunicação. Percebo que, por repercussão do futebol, “esporte
universalmente popular” transformado num “complexo industrial capitalista de
categoria mundial (embora de tamanho modesto, em comparação com outras
atividades de negócios globais)” (HOBSBAWN, 2007, p. 92), conhecimentos e
recursos pertinentes à educação e à formação cultural são, explícita ou
implicitamente, reprocessados e difundidos. Tendo alcance menor, mas expressivo
ainda assim, cito outros esportes, como o basquete, o rúgbi e corridas
de carro.
Dentre os diversos artigos
integrantes do trabalho “Mobilidade urbana: desafios e sustentabilidade” (PIRES
e PIRES, 2016), Pereira (2016, p. 28) observa que a “inexistência de espaços
abertos como praças” faz com que cidadãos fiquem dependentes de “espaços
fechados e com objetivos comerciais, como os shoppings centers”. Entendo
que a construção de identidades locais e identidades regionais fica
influenciada pelo exercício de vivências em ambientes coletivos, em
equipamentos de cultura e de lazer. No espaço público irrestritamente
acessível, a perspectiva de encontros e convivências é mais ampla e
diversificada que a perspectiva suportada pelos espaços coletivos seletivamente
acessíveis. Considero que a diversificação de espaços propícios ao consumo
cultural oportuniza o enriquecimento cultural, algo pertinente ao
desenvolvimento e à educação das pessoas.
Referências
bibliográficas:
DEBRASSI, T. M. F. B.. Paradigmas
e teorias da cidade: das reformas urbanas ao urbanismo contemporâneo - o caso de
Barcelona. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação
na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas,
São Paulo, 2006.
HARVEY, D.. Condição
pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 1992. Trad.
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola,
1992. Título original em inglês: The Condition of Postmodernity: Na Enquiry
into the Origins of Cultural Change.
HOBSBAWN, E.. Globalização,
Democracia e Terrorismo. 2007. Trad. José Viegas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. Título original em inglês: Globalization, Democracy and
terrorism.
LEFEBVRE, H.. O Direito à
Cidade. 1 ed., 1968. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.
143p. Título original em francês: Le Droit à la Ville.
NELSON, J.. Disciplina Positiva. 3. ed.. Barueri,
São Paulo. Manole, 2015. 308 p. Trad.: Bernadette Pereira Rodrigues, Samantha
Schreier Susyn.
PEREIRA. F. L. B.. A
Fundamentalidade do Direito à Mobilidade Urbana. IN Mobilidade
urbana: desafios e sustentabilidade, São Paulo, SP, Ed. Ponto e Linha, v.
2, 2016.
PIRES, A. C. M., PIRES, L. R.
G. M. (orgs.). Mobilidade urbana: desafios e sustentabilidade. Texto: A
Fundamentalidade do Direito à Mobilidade Urbana. Autor: Flávio de Leão Bastos
Pereira. São Paulo. Ponto e Linha, 2016.
ROLNIK, R.. O que é
cidade. 4. ed.. São Paulo: Brasiliense, 1995. 203 p.