21 – Das monofuncionalidades da Cidade à habitabilidade arquitetônica dos espaços públicos urbanos.
Elaborado durante a década de
1930, o documento “A Carta de Atenas” discorre sobre características das
cidades e, discriminando as funções “habitação”, “lazer”, “trabalho” e
“circulação”, enuncia que essas as 3 (três) primeiras são as funções
fundamentais a serem articuladas por meio dessa última função, a qual fica
espacializada por um sistema de circulação premeditado. Dentre os termos desse
documento, que consiste num manifesto desenvolvido no âmbito do IV Congresso
Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), reconheceu-se que “à medida
milenar, (...), a velocidade do passo humano, somou-se uma medida em plena
evolução, a velocidade dos veículos mecânicos”.
Primando pelo cumprimento dessas
funções elementares, considerou-se, no âmbito desse manifesto, que as ruas
devem ser hierarquizadas e distinguidas conforme finalidades próprias, de
maneira a ser maximizada a eficiência da circulação de pessoas mediante
veículos e minimizados os impactos do trânsito desses veículos em residências e
em estabelecimentos que demandam recolhimento e/ou reserva em relação às vias
públicas. Assim, tem-se que expressões como “vias de percurso lento para uso de
pedestres” e “vias de percurso rápido para uso de veículos”, ambas constantes
do item h) da seção “Habitação” da segunda parte desse manifesto, e “ruas de
residências”, “ruas de passeio”, “vias de trânsito ou de grande circulação” e
“vias principais”, constantes da seção “Circulação”, evidenciam a perspectiva
de setorização monofuncional do território urbano.
Silva (2016) considera que a
mobilidade decorrente dos transportes e, notoriamente, do transporte coletivo,
consiste num instrumento favorecedor da realização plena das 10 (dez) funções
sociais da cidade discriminadas no documento “Nova Carta de Atenas”.
Substituindo as 4 (quatro) funções discriminadas originalmente nesse documento
“A Carta de Atenas”, essas 10 (dez) funções são as seguintes: cidade para
todos, cidade participativa, cidade saudável, cidade como refúgio, cidade
produtiva, cidade inovadora, cidade ecológica, cidade cultural, cidade contínua
e cidade acessível (GARCIAS e BERNARDI, 2008, apud SILVA, 2016).
Jacobs (1961), Heidegger
(1962, apud SOUZA, 1998); Souza
(1998) e Hertzberger (1991) reconhecem, debatem e/ou exemplificam a
consideração de que os fenômenos que conferem habitabilidade às edificações
também ocorrem no espaço urbano, uma vez que esse espaço urbano é abrangido
pela “esfera da vivência” (HEIDEGGER, 1962, apud
SOUZA, 1998) e, por conseguinte, possui qualidades de um lugar habitável.
Hertzberger (1991, p. 63) observa que a qualidade de vivência nas ruas e a
qualidade de vivência nas casas se complementam. Choay (1980, p. 52), ao
discorrer sobre trabalhos literários dedicados à compreensão do espaço
construído, observa que Heidegger (1962) apresenta posicionamento crítico
acerca do “sentido da edificação”, questionando o construir.
Na obra literária “Saber ver
Arquitetura”, originalmente publicada em italiano durante o ano de 1984, o
autor, Bruno Zevi, observa que a experiência própria da arquitetura se estende
pela cidade, por ruas, praças e becos (ZEVI, 1984, p. 25) e que “falta em nosso
idioma (o italiano, a saber) um vocábulo que exprima um conceito fundamental,
uma qualidade notável da arquitetura, a livability, isto é, a
habitabilidade num sentido compreensivo, material, psicológico e espiritual da
palavra” (ZEVI, 1984, p. 174). Debrassi (2006, p. 67) observa que os boulevares
implantados em Paris, França, durante o século XIX ocasionaram “uma nova
habitabilidade urbana” em sequência àquela presente “no centro da velha cidade
medieval”.
Sathisan e Srinivasan (1998)
observam que, recorrentemente, limitações orçamentárias e limitações de
disponibilidade de terrenos dificultam intervenções no sistema viário e que os
expressivos custos de implementação dessas intervenções as tornam dificilmente
reversíveis. Ainda assim, Bocarejo, LeCompte e Zhou (2013) apresentam
comentários acerca dos efeitos urbanisticamente salutares da reversão e/ou do
desfazimento de rodovias localizadas em zonas urbanas estadunidenses.
Percebo que o espaço das ruas pode ser usado e vivenciado de maneira distinta da perspectiva funcionalista retratada pelo documento "A Carta de Atenas". Nesse espaço, há, ao menos: a condição de estar ao ar livre, em deslocamento utilitário para trabalhos, estudos, lazeres; a condição de estar ao ar livre, em lazer propriamente; e a condição de estar em serviço, exercendo atividades econômicas. As ruas se prestam a interações sociais. As ruas servem a objetivos além da simples circulação de pessoas e veículos. Nas ruas, ocorrem manifestações culturais, como rodas de capoeira e confraternizações de carnaval. Nas ruas, ocorrem ações sociais de promoção da saúde, ações comunitárias religiosas, como procissões, candombes e congados.
Em síntese, ruas não se
prestam somente à mobilidade de veículos automotores e à mobilidade de
pedestres. Nas ruas, esses veículos podem não ser o principal elemento a ser
acolhido. Ruas podem ser quintais, pistas de dança, lugares para encontros,
lugares para desencontros. Há sentido existencial além do ir e vir. Percebo, ao
menos, o estar, o ser e o conviver. Praças, largos, vielas etc. apresentam
alguma habitabilidade, o que afasta monofuncionalidades. Até viadutos têm
potencial além da função de circulação. Os baixios de viadutos são espaços
passíveis de apropriação afim ao lazer e à socialização.
As funções “habitação”,
“lazer”, “trabalho” e “circulação” podem se entrelaçar, havendo sobreposições
e/ou alternâncias. Fica pertinente que, no âmbito do planejamento urbano e no
âmbito de projetos arquitetônicos, esse entrelaçamento potencial seja
reconhecido e fomentado. Esse entrelaçamento não deixa de surgir ou ocorrer,
ainda que desconsiderado por quem idealize espaços construídos.
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