20 – Breves considerações sobre os princípios funcionalistas do urbanismo moderno.

Em sequência aos estudos e projetos desenvolvidos por Ildefonso Cerdà no século XIX, arquitetos e urbanistas debateram, durante a primeira metade do século XX, a organização das cidades. Na Europa, foram realizados congressos em que foram difundidas ideias racionalistas acerca de arranjos espaciais e acerca da construção dos edifícios, das casas e dos sistemas viários componentes desses arranjos. Essas ideias consideraram métodos construtivos racionalizados e industrializados, de maneira a serem viabilizadas concepções e produções funcionalistas e quantitativamente expressivas. Os arranjos espaciais urbanos, idealmente, ficaram balizados pelas funções: habitação ou moradia; trabalho ou produção; recreação, repouso ou lazer e; circulação, a qual conecta localidades referentes às demais funções. A setorização dessas funções não abrangia sobreposições. A racionalidade funcionalista, desconsiderando a multiplicidade e a simultaneidade das ações e das dinâmicas recorrentes no cotidiano urbano, veio justificar a pertinência do ordenamento do território.

O documento “A Carta de Atenas”, concluído nos primeiros anos da década de 1930 em vista de debates desenvolvidos em congressos europeus, cristaliza o discurso técnico funcionalista presente no planejamento urbano que veio a ser praticado no continente europeu e, sob adequações regionalistas, em outros continentes. Denominável “planejamento urbano moderno” (JACOBS, 1961, p. 19, 357, 418, 484), “planejamento urbano ortodoxo” (JACOBS, 1961, p. 07, 24, 42, 96, 98, 171, 195, 205, 257), “planejamento modernista/funcionalista” (MARICATO, 2000, p. 122, 147), esse planejamento racional aborda cientificamente assuntos relacionados ao espaço urbano e representa o “urbanismo moderno”. Villaça (1999, p. 173) equipara “aquilo que nas últimas décadas (ou seja, nas décadas de, ao menos, 1970, 1980 e 1990) tem sido denominado planejamento urbano” ao “que nas décadas de 1930 e 1940 se chamava de urbanismo”. Debrassi (2006, p. 42) emprega a expressão “teorias e paradigmas do urbanismo moderno e contemporâneo”. As traduções do título original em italiano da obra “Le origini Dell’Urbanistica Moderna”, de autoria de Leonoardo Benevolo e publicada em 1967, têm abrangido expressões variadas: “As origens da urbanística moderna”, em português; “Aux sources de l’urbanisme moderne”, em francês; “The Origins of Modern Town Planning”, em inglês. Dentre a obra intitulada “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”, Maricato (2000, p. 144) reconhece que os conceitos de “urbanismo” e de “planejamento urbano” são passíveis de diferenciações, todavia, essa autora, discorrendo brevemente sobre as relações entre a arquitetura brasileira e a modernidade, opta por não pormenorizar essas diferenciações de conceitos. Especificamente, essa autora considera que “estabelecer uma diferenciação entre eles não é fundamental para os objetivos deste trabalho” (ibidem), ou seja, desta obra intitulada “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”.

Segundo Hertzberger (1991, p. 78), não se deve esquecer “de que o Movimento Moderno tinha como objetivo específico a melhoria dos edifícios, e, especificamente, a melhoria das moradias por meio de um assentamento de melhor qualidade que assegurasse mais luz, uma visão ampla, espaços exteriores mais satisfatórios etc.”. Para esse autor, os diversos exemplos de urbanismo projetados durantes as décadas de 1920 e 1930 são relevantes, se julgados “cada um deles de acordo com suas qualidades específicas”.

É possível detectar no Brasil, durante a segunda metade do século XX e, ainda, as primeiras décadas do século XXI, faces desse “urbanismo moderno” em meio a políticas públicas municipais, estaduais e federais e, também, em meio às legislações e textos acadêmicos. Centros administrativos federais, estaduais ou municipais e cidades universitárias exemplificam espaços monofuncionais dedicados ao trabalho e ao estudo. Ainda que arquitetonicamente notórios, esses espaços são passíveis de ressalvas urbanísticas relativas, ao menos, à segurança, à acessibilidade universal e ao transporte público. Rodovias urbanas e anéis rodoviários, ora elevados, ora superficiais, ora subterrâneos, exemplificam espaços monofuncionais dedicados à circulação de pessoas mediante veículos automotores. A circulação de pessoas a pé ou de bicicleta não foi alvo de ênfases, tendo sido salientada a dependência de veículos automotores e, em certas circunstâncias, de composições ferroviárias. Hertzberger (1991, p. 64) afirma, notadamente, que as ruas podem se prestar “a outros objetivos além do trânsito motorizado”, sendo espaços para interações sociais.

O pensamento técnico presente no urbanismo moderno privilegiou o caráter funcionalista monofuncional da organização do espaço urbano. Fundamentos técnicos e científicos vieram a reger a organização da estrutura urbana, porém ficaram constrangidos por interesses recorrentes nos sistemas econômicos e por limitadas compreensões dos fenômenos econômicos, sociais e políticos. Jacobs (1961, p. 244) afirma que “o desenvolvimento do planejamento urbano e da política habitacional modernos fundamentou-se emocionalmente numa relutância inflexível em reconhecer como desejáveis as concentrações de pessoas nas cidades, e essa emoção negativa acerca das concentrações urbanas contribuiu para o enfraquecimento intelectual do planejamento urbano”. Choay (1980, p. 2) relata que “textos produzidos pelo urbanismo” até aproximadamente meados do século XX apresentam uma anomalia: impondo o urbanismo como “autoridade incondicional” e abrangendo proposições ditadas por “ideologias tácitas”, “ideologias inconfessas e não assumidas”, esses textos “se atribuem um estatuto científico que não têm direito”. Villaça (1999, p. 186-187) identifica a ideologia da supremacia da razão tanto como base do discurso que propôs “formas racionais de organização social” quanto como base da tecnocracia presentes durante a segunda metade do século XIX e durante o século XX.

Considero que é passível de ressalvas o urbanismo crucialmente dependente de veículos automotores, pois a disposição de ruas unicamente dedicadas ao tráfego desses veículos, em maioria de uso individual, ocasiona limitações de acessibilidade às socializações, aos lazeres, aos estudos e aos serviços presentes nas cidades. Hertzberger (1991, p. 78) observa que a “mania do ‘trânsito’” acentuou a fragmentação das cidades performada por arquitetos modernos e por planejadores urbanos.

Ruas podem possuir qualidades de um lugar habitável. Trabalhos podem ser realizados em moradias ou em localidades relativamente perto delas. Os princípios funcionalistas difundidos pelo “urbanismo moderno” estão presentes nas cidades e nos discursos de quem habita as cidades. Percebê-los no cotidiano urbano é um exercício salutar, porque nos faz olhar criticamente para a organização dos espaços que habitamos e dos espaços por onde simplesmente passamos.

 

Referências bibliográficas:

A Carta de Atenas. IN: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETURA MODERNA (CIAM), 4., 1931-33. Trad. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Disponível em: portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201933.pdf. Acesso em 16/08/2024.

BENEVOLO, L.. As origens da urbanística moderna. 1. ed., 1967. Trad. Conceição Jardim e Eduardo L. Nogueira. Lisboa: Presença, 1981. 168 p. Título original em italiano: Le origini Dell’Ubanistica Moderna.

CHOAY, F.. A regra e o modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985. 334 p. Título original em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme.

DEBRASSI, T. M. F. B.. Paradigmas e teorias da cidade: das reformas urbanas ao urbanismo contemporâneo - o caso de Barcelona. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós- Graduação na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, 2006.

HERTZBERGER, H.. Lições de Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduardo Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Students in Architecture.

JACOBS, J.. Morte e vida de grandes cidades. 1. ed., 1961. Trad. Carlos S. M. Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 499 p. Título original em inglês: The Death em Life of Great Ameriacans Cities.

MARICATO, E.. As Ideias Fora do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único: desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.

VILLAÇA, F. J. M.. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. IN O processo de urbanização no Brasil, São Paulo, SP, Ed. Universidade de São Paulo, 1999.

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