19 – Faces da cidade: formal; oficial; legal; informal, clandestina, ilegal.
As
cidades são materializadas através de ações diversas feitas por pessoas
diversas. Ações entrelaçadas, sobrepostas, convergentes, divergentes,
subsequentes, contraditórias.
Zevi
(1984, p. 222) expõe que estudos sobre as cidades e o território urbano devem
ser subsidiados pela “definição clara do significado da arquitetura chamada
‘menor’, secundária, criada sem ajuda de arquitetos”. Observo
que o emprego desse termo “menor” é passível de debates, pois estimo que a
arquitetura criada sem a ajuda de arquitetos seja mais numerosa que aquela
criada com a ajuda de arquitetos. Não raro, são realizados, no Brasil, acréscimos
edilícios às arquiteturas formalmente materializadas. Barracões, “puxados”,
“puxadinhos”, “quartinhos”, espaços gourmet e quiosques são exemplos desses
acréscimos. Entendo que distinções entre a arquitetura criada com a ajuda de
arquitetos e arquitetura sem a ajuda podem ficar subordinadas às distinções
entre a arquitetura que compõe a cidade formalmente materializada e a cidade
informalmente materializada.
Maricato (2000, p. 122)
emprega a expressão “exclusão urbanística” relativamente às ocupações ilegais
do solo urbano e explicita que essa exclusão tem sido ignorada pela “cidade
oficial”. Atribuindo à “cidade dos excluídos ou favelados” a denominação “não
cidade”, Maricato (2000, p. 164-165) enuncia diversas questões:
“(...)
Por que a universidade não dá a devida importância a essa realidade? Por que os
urbanistas e organismos de planejamento urbano a ignoram, frequentemente? Por
que a própria sociedade brasileira não tem consciência dessa situação? Quais
são os expedientes que permite o ocultamento de ocorrência tão grande e
palpável? Como algo tão visível permanece quase invisível? Ou, pelo menos, como
é que as dimensões desses fatos podem ser formalmente ignoradas pelo
Judiciário, pelo Legislativo, pelo Executivo, pelos técnicos, por grande parte
da academia, que insistem numa representação que não corresponde à cidade
real?”
Entendo que o projeto social
“Arquitetura na Periferia” (vide o endereço eletrônico arquiteturanaperiferia.org.br)
exemplifica o reconhecimento da importância da realidade além da “cidade
oficial” ou “cidade formal” ou, ainda, “cidade legal”. Sem retratar análises
bibliométricas aprofundadas, percebo, genericamente, que dissertações de
mestrado, teses de doutorado e monografias diversas, concluídas desde a década
de 2000, também. Onde não prevalece o que embasa essas caracterizações, têm
aplicabilidade caracterizações como “cidade clandestina”, “cidade informal” e,
também, “cidade ilegal”.
Considero destacável a
perspectiva apresentada por Maricato (2000, p. 165) conforme o seguinte:
“A
tensão existente entre a cidade formal e a cidade ilegal é dissimulada. Além
dos investimentos públicos no sistema viário, a legislação urbanística se
aplica à cidade ‘oficial’ (‘flexibilizada’ pela pequena corrupção). Os serviços
de manutenção das áreas públicas, da pavimentação, da iluminação e do
paisagismo, aí são eficazes. Embora os equipamentos sociais se concentrem nos
bairros de baixa renda, sua manutenção é sofrível. A gestão urbana e os
investimentos públicos aprofundam a concentração de renda e a desigualdade. Mas
a representação da ‘cidade’ é uma ardilosa construção ideológica que torna a
condição de cidadania um privilégio e não um direito universal: parte da cidade
toma o lugar do todo. A cidade da elite representa e encobre a cidade real.
Essa representação, entretanto, não tem a função apenas de encobrir
privilégios, mas possui, principalmente, um papel econômico ligado à geração e
captação da renda imobiliária”.
Maricato (2000, p. 165) emprega
a expressão “cidade formal” em oposição à expressão “cidade ilegal”. Entendo
que as denominações “cidade oficial”, “cidade formal” e “cidade legal” tratam
do mesmo objeto, o qual é distinto do objeto representado pelas denominações
“cidade clandestina”, “cidade informal” e, também, “cidade ilegal”. Estimo que
sejam raros os imóveis rigorosamente regulares. Alguma modificação posterior às
concessões de Baixa de Construção e/ou “Baixa e Habite-se” acontece: um deck
de madeira é instalado sobre vagas de estacionamento para o acolhimento de
clientes em bares, padarias etc.; em apartamentos, áreas privativas
descobertas passam a estar cobertas; piscinas são instaladas, reduzindo-se
áreas permeáveis etc..
Em certa ocasião, escutei de
uma engenheira civil a seguinte afirmação em relação à legislação urbanística:
“as pessoas só cumprem a lei porque precisam, quando precisam”. Desenvolvendo
pensamentos em sequência a essa afirmação, compreendo que a “cidade formal” se
faz mediante alguma contrariedade dos munícipes. Em linguajar sintético, a
perspectiva desses munícipes é algo como: “arquiteturas são feitas apesar da
lei”.
Noutra ocasião, surgiu a
seguinte frase durante um diálogo com uma arquiteta: “a lei regula a vida, mas
a vida extrapola a lei”. Não ficou a conclusão de que a legislação urbanística
deve ser ignorada, porém foi percebido que, em certas circunstâncias, leis,
decretos etc. trazem efetivamente mais dificuldades do que asseguram
qualidades.
Perante uma desconformidade
de afastamento lateral, havendo 25cm sobrepostos ao afastamento mínimo de 2,30m
relativamente a uma residência unifamiliar lindeira a um terreno baldio,
escutei de uma advogada a pergunta: “qual é o peso social dessa sobreposição?”.
Sem apresentar resposta imediata nem me dispor a palestrar delongadamente,
passei a tentar compreender as implicações e/ou consequências das
desconformidades urbanísticas e/ou edilícias. A ausência e/ou insuficiência de
áreas permeáveis apresenta repercussões diferentes da ausência e/ou
insuficiência de vagas de estacionamento. A extrapolação de limites de
potencial construtivo apresenta repercussões distintas da inobservância de
afastamentos frontais. A mesma desconformidade, em situações construídas
diferentes, vem apresentar repercussões diferentes.
Entendo que a legislação
urbanística não deve ser ignorada, ainda que careça de refinamentos e/ou
aprimoramentos.
Referências bibliográficas:
MARICATO, E.. As Ideias Fora
do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único:
desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.
ZEVI, B.. Saber ver a
arquitetura. 1. ed., 1984. Trad. Maria Isabel Gaspar, Gaëtan Martins de
Oliveira. 6. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2009. 286 p. Título original em
italiano: Saper Vedere L’architettura.