16 – O urbano além da cidade.

As aglomerações urbanas são multifacetadas, pois apresentarem dimensões públicas políticas e espaciais de vida cotidiana (ROLNIK, 1988). A ocorrência de lugares geográficos representa a dimensão espacial. A ocorrência de espaços construídos desprovidos de sentido autenticamente individualizado, como shoppings centers, exemplifica a antítese dessa dimensão, o “não-lugar”. Práticas políticas exercidas por comunidades de cidadãos representam a dimensão política. A gestão das dimensões públicas ocorre recorrentemente através de um poder urbano emanado de uma autoridade político-administrativa.

Monte-Mór (2007), ao discorrer acerca da distinção entre os termos “urbano” e “rural”, cita as dicotomias “cidade-campo”, “urbano-rural” e “industrial-agrário” e indica que a ocorrência, no campo e no meio agrário, da lógica produtiva industrial distingue os termos “campo” e “agrário” do termo “rural”. Além, considera que a dicotomia “urbano-rural” é rígida e analiticamente reducionista, limitando a apreensão da complexidade do meio ambiente antropizado.

Castriota e Monte-Mór (2016, p. 9) distinguem o que se denomina “cidade” do que se denomina “urbano” e reconhecem que há espaços urbanos e/ou porções territoriais urbanizadas que não consistem em cidades. Esses autores ponderam que os termos “urbano” e “rural”, historicamente empregados a fim de se diferenciar a cidade e o campo, não mais atendem a essa finalidade analítica. Eminentemente relacionados a condições demográficas e de infraestrutura, esses termos “urbano” e “rural” direcionam partidos interpretativos balizados pela consideração da cidade enquanto ideologia. Todavia, uma vez que a noção de “vida urbana” não tem se limitado, desde meados do século XX, à cidade, fica defasado simplificar o cenário territorial sob a perspectiva dicotômica “urbano-rural”.

Citando “as condições de produção” como exemplo de aparato exclusivamente acessível aos grandes centros urbanos durante a primeira metade do século XX, Castriota e Monte-Mór (2016) ponderam que o termo “urbano”, enquanto um substantivo, expressa a realidade urbano-industrial que integra a cidade e o campo. Ponderam, também, que o termo “rural”, enquanto um substantivo, abrange condições de isolamento presentes em “ilhas de ruralidade”, as quais são porções territoriais intersticiais relativamente isoladas do aparato capitalista cotidianamente presente nos centros urbanos. Afirmam, por conseguinte, que as dinâmicas locais presentes nessas “ilhas de ruralidade” não dependem do ritmo de atividades presentes na realidade urbano-industrial e que a dicotomia “urbano-rural” tem sido atenuada no Brasil por políticas públicas praticadas durante a década de 2010 as quais têm propiciado aos assentamentos de pequeno porte extensivamente urbanizados condições materiais consistentes no consumo de “urbanidades”.

Shin (2017) discorre sobre 02 (duas) abordagens relativas à definição, no âmbito da geografia urbana, do termo “urbano”: (i) o urbano como uma entidade territorialmente delimitada em vista de elementos estatísticos, ainda que, faticamente, não haja atividades urbanas e (ii) o urbano como uma construção social.

No que tange à delimitação territorial relacionada a elementos estatísticos, Shin (2017) observa que esse termo “urbano” tem sido empregado (i) quando a densidade demográfica aferida em vista de um recorte territorial específico extrapola limites administrativamente convencionados, (ii) quando funções administrativas públicas ocorrem e (iii) quando parte da população local atua profissionalmente em segmentos industriais distintos do segmento de bens primários. Shin (2017) destaca, no entanto, que esses limites estatísticos são controversos e variam conforme recortes espaciais e temporais. Especificamente, corrobora Wirth (1938) ao destacar que (i) pequenas comunidades próximas a regiões metropolitanas podem ser mais urbanas que grandes comunidades situadas em zonas rurais e que (ii), enquanto o termo “cidade” representa o locus de urbanismo, o modo de vida urbano não se limita às cidades.

Shin (2017) corrobora, subsequentemente, Harvey (1996) e distingue esse termo “cidade” do termo “urbano”. Especificamente, sustenta que as cidades não são autocontidas, mas interagem com regiões adjacentes suburbanas, rurais, periféricas etc. Esse autor indica, ainda, que a literatura tem considerado “um contínuo urbano-rural” em substituição à dicotomia “urbano-rural”, de maneira a serem evitadas delimitações arbitrárias, geralmente administrativas, de porções territoriais urbanas. Shin (2017) argumenta, assim, que a urbanidade não se restringe à delimitação das cidades e que a urbanização extrapola a expansão territorial dessas delimitações administrativas. Propriamente, esse autor sustenta a pertinência de equiparar o urbano a uma amálgama de processos multiescalares de produção, consumo e troca, de modo a ser cristalizada mediante cidades, subúrbios, periferias etc..

Destaco, em conclusão breve, que o termo “campo”, a expressão “meio agrário” e o substantivo “rural” são passíveis de distinções entre si. Igualmente, o substantivo “urbano” e o termo “cidade” podem ser diferenciados. A noção de “vida urbana” ou o modo de vida urbano não têm se limitado às conformações espaciais denomináveis “cidades”.

 

Referências bibliográficas:

CASTRIOTA, R.; MONTE-MÓR, R. L. M.. How inclusive is the urban? Which urban are we talking about? Regions Magazine, v. 303, n. 3, p. 9-11, 2016. ISSN: 1367-3882.

MONTE-MÓR, R. L. M.. A Relação Urbano-Rural no Brasil Contemporâneo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE DESENVOLVIMENTO REGIONAL, 2., 2007, Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Anais... Santa Cruz do Sul: UNISC, 2007. 26 p.

ROLNIK, R.. O que é cidade. 4. ed.. São Paulo: Brasiliense, 1995. 203 p.

SHIN, H. B.. Geography: Rethinking the ‘Urban’ and Urbanization. In: IOSSIFOVA, D.; DOLL, C.; GASPARATOS, A. (Org.). Defining the Urban: Interdisciplinary and Professional Perspectives. Londres: Routledge, 2017. p. 47-59.

WIRTH, L.. “Urbanism as a Way of Life. American Journal of Sociology 44 (1):1- 24. 1938.

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