12 – Notas sobre a conformação de espaços urbanos.
Em tempos e em regiões diferentes, a conformação de espaços urbanos apresenta diferenças e especificidades. Choay (1980, p. 2) observa que “o sagrado e a religião foram, tradicionalmente, os grandes ordenadores do espaço humano”. Ching e Eckler (2014, p. 13-14) observam que a arquitetura, em primórdios, atendia às necessidades básicas de abrigo e que, em tempos subsequentes, passou a atender também a necessidades socias e culturais. Ching e Eckler (ibidem) relatam que as “artes da construção e seus usos especializados” passaram a ser dedicados a “propósitos religiosos e públicos”, havendo pluralidades de expressão: algumas sociedades mais pragmáticas que outras; algumas mais simbólicas que outras; ênfases em equipamentos de ordem funcional e pragmática, como silos; ênfases em equipamentos de cunho imaterial, como templos. Expõem, também, que “(...) em alguns lugares, os ofícios associados com a construção eram controlados pela elite. Em outros, as artes de construção tinham uma expressão mais popular”.
Pires (2006, p. 23-24) considera que obras de arquitetura e projetos urbanísticos são “registros de um tempo, registros de uma cultura, de anseios, homenagens, sentimentos nobres e mesquinhos, enfim, momentos de uma civilização”. Para esse autor, “um muro que se estende por quilômetros e corta uma cidade é mais do que cimento, ferro e blocos – é a exteriorização de um desejo de segregação (...)”. Esse autor, em relação a instalação de obstáculos físicos em ruas a fim de haver restrições de acesso por essas ruas, sustenta que “mais do que muros e cercas, floreiras e portões de ferros, há, por trás destes objetos físicos, destes projetos urbanísticos e arquitetônicos, sentimentos que animam estes atos”.
No Brasil, ao longo da segunda metade do século XX e das primeiras décadas do século XXI, a conformação de espaços urbanos e de espaços arquitetônicos tem abrangido expansões horizontais periféricas e dispersas, as quais são orientadas pela autossegregação de quem consegue se insular em terras de acesso seletivizado e/ou providas de conforto, amenidades, qualidades ambientais etc.. Os condomínios de prédios de apartamentos providos de infraestrutura de lazer e de segurança e os “loteamentos fechados” exemplificam essa autossegregação. Seo (2016, p. 65) emprega a expressão “expansão horizontal periférica e dispersa” ao discorrer sobre o modelo de crescimento urbano presente na cidade de São Paulo, no Brasil, durante as últimas décadas do século XX. O termo “autossegregação” é empregado por Mendonça (2002, p. 05, 110) ao estudar a organização socioespacial da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), no Brasil, e por Andrade (2015, p. 24) ao estudar relações entre o planejamento da acessibilidade e da mobilidade em Fortaleza, no Brasil, e a “periferização por segregação involuntária”. Cardoso (2007, p. 28) emprega a expressão “segregação socioespacial (involuntária)” ao discorrer sobre relações entre o transporte público, a acessibilidade urbana e desigualdades socioespaciais na RMBH. Expressões como “segregação voluntária”, “segregação involuntária” e “segregação induzida”, aludidas dentre os trabalhos de Mendonça (2002), Cardoso (2007) e Andrade (2015), elucidam complementarmente esse termo “autossegregação”, pois se referem a quem não se autossegrega, a quem, em linguajar coloquial, “fica de fora”. Essas expressões, além, remontam às ideias e argumentações de Gist e Fava (1964) na obra “Urban Society” e de Villaça (1998) na obra “O Espaço intra-urbano no Brasil”.
Ao discorrer, em vista dos “loteamentos fechados” e dos bairros com acesso restrito aos moradores, sobre a colisão entre o direito fundamental à segurança pública desses moradores e o direito fundamental à liberdade de locomoção de quem não é morador desses loteamentos e bairros, Pires (2006, p. 37-38) expõe que o uso exclusivo, por parte de cidadãos, de bens de domínio público não é estranho ao ordenamento jurídico brasileiro, pois, em grupo ou individualizadamente, cidadãos obtêm autorizações de uso exclusivo de ruas para a realização de eventos, como festas juninas escolares, e obtêm permissões para a instalação em praças de bancas de jornais/revistas. Esse autor observa, especificamente, que o “fato de a exclusividade de uso ser conferida a particulares não é, pelo fato em si, circunstância ilícita” e que somente o seria se abusiva e ilegal a consequente restrição à liberdade de locomoção.
Pires (2006, p. 38-39) dedica prestígio primeiramente ao “princípio da segurança pública”, situando-o em preponderância sobre o “princípio da liberdade de locomoção” e afirmando que a razão para a pretensão de ‘fechar’ loteamentos “não é, (...), a simples vontade do brasileiro de viver recluso em seu próprio lar”. Para esse autor, “a colisão entre o princípio da segurança pública e o princípio da liberdade de locomoção (...) deve se resolver, em geral, em favor do primeiro”, pois “a necessidade de proteger-se e à sua família legitima aos cidadãos – como regra geral, mas não absoluta – promover os meios que assegurem a almejada segurança”. Pires (2006, p. 40), assim, apresenta 02 (dois) exemplos a fim de retratar esse caráter geral, mas não absoluto. Cada exemplo, especificamente, abrange conclusões diferentes, “ora em favor do princípio da segurança pública, ora em prestígio ao princípio da liberdade de locomoção”. Observo que o prestígio ao princípio da segurança pública ocorre quando constatada a ausência de dependência do uso, por “terceiros (não-residentes)” das “ruas pelo comércio local” e a ausência de comprometimento do acesso a hospitais. Considero que hospitais exemplificam equipamentos comunitários e que há outros equipamentos bem como há espaços livres de uso público, como praças e parques, a terem o acesso e a fruição livres de comprometimentos ocasionados pelo ‘fechamento’ de bairros e loteamentos. Ressalto que a preponderância do “princípio da segurança pública” sobre o “princípio da liberdade de locomoção” não deve acobertar silenciosamente a privatização de praças, parques e equipamentos comunitários, ainda que associações de moradores locais adotem formalmente esses bens, dedicando recursos financeiros à manutenção e à conservação que se fizerem pertinentes.
Ao discorrer sobre a conformação de espaços urbanos em cidades norte-americanas durante a primeira metade do século XX, Jacobs (1964, p. 235) observa que, “em certa época, e em certa localidade, sob determinada conjuntura de legislação, tecnologia e financiamento, algum modo particular de acomodar moradias no terreno tende a ser o mais eficiente (...)”. Maricato (2000, p. 151), ao discorrer sobre a urbanização havida durante a primeira metade do século XX na cidade de São Paulo, no Brasil, identifica a massificação da periferização através da combinação “do lote precário e irregular na periferia urbana com a autoconstrução da moradia”. Essa autora reconhece a presença de uma “dinâmica própria de produção da cidade” distinta daquela veiculada “pelas propostas de regulação urbanística ou de política habitacional”.
A conformação de espaços urbanos ocorre mediante ações diversas: simultâneas, sobrepostas, subsequentes, desarticuladas entre si, articuladas entre si. Discursos racionais que venham a citar teorias urbanísticas podem encobrir decisões políticas, exclusividades pessoais, exclusividades de grupos sociais específicos. Além das ideologias explicitamente retratadas por esses discursos, pode haver, intencionalmente ou não, ideologias silenciosamente promovidas por esses discursos. Hertzberger (1991, p. 64) alerta: “quanto a todo espaço público, devemos nos perguntar como ele funciona: para quem, por quem e para qual objetivo”. É necessária disposição para ler o que está nas entrelinhas e escutar o que está nas entrefalas. É necessária disposição para compartilhar vivências nas cidades. Fica importante, assim, conhecer e compreender a integralidade das intenções às quais a organização do espaço está subordinada.
Referências bibliográficas:
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MARICATO, E.. As Ideias Fora do Lugar e o Lugar fora das Ideias. IN A Cidade do Pensamento Único: desmanchando consensos, Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2000.
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VILLAÇA, F.. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Lincoln Institute / Fapesp / Studio Nobel, 1998. 373 p..