04 - Percepções iniciais sobre o urbanismo.


A conformação de espaços coletivos ocorre há séculos e é influenciada, ao menos, por circunstâncias culturais, geográficas e históricas. A diversidade de feições desses espaços coletivos é significativa: instalações temporárias de comunidades nômades; aldeias indígenas na América do Sul; vilas medievais europeias outrora envoltas por muralhas; cidades planejadas em que a vida cotidiana vai além do que foi previamente idealizado. Sem ginásticas interpretativas, é possível considerar que muitos espaços coletivos possuem caráter urbano, ainda que tenham sido moldados sem critérios de organização racionalizada.

Além da arquitetura, que cuida, em linguajar simplista, de espaços individualizados ou seletivamente coletivizados, há os espaços irrestritamente coletivos. Ruas, praças e largos são exemplos. De maneira rasa, o urbanismo cuida das localizações, dos formatos e dos tamanhos desses espaços irrestritamente coletivos e dos espaços dedicados a comportar arquiteturas. Considero que aprofundar conhecimentos e saberes sobre esse termo “urbanismo” é pertinente para que haja mais convivência do que a simples coexistência.

Meditando sobre como o urbanismo está situado em relação à arquitetura, imagino que não haja uma resposta somente. Casas em fazendas são arquitetura no meio rural. Presídios são edifícios fortificados que, intencionalmente, repelem o que os cerca. Em sentido oposto, bares e restaurantes que utilizam cadeiras e mesas sobre calçadas acolhem quem por eles se interessa. Percebo que a arquitetura participa da composição de espaços urbanos, moldando-os diversificadamente. CHING e ECKLER (2014, p. 84) listam alternativas acerca de como a forma da edificação impacta o espaço circundante. Perante o olhar coletivizado trazido pelo urbanismo, a arquitetura representa olhares individualizados, olhares seletivamente coletivizados. Hertzberger (1991, p. 12) considera que “os conceitos de ‘público’ e ‘privado’ podem ser interpretados como a tradução em termos espaciais de ‘coletivo’ e ‘individual’”. Para esse autor: é pública “uma área acessível a todos a qualquer momento”, sendo que “a responsabilidade por sua manutenção é assumida coletivamente”; é privada “uma área cujo acesso é determinado por um pequeno grupo ou por uma pessoa, que tem a responsabilidade de mantê-la”.

Lima (2002) observa que os termos “urbanismo” e “urbanização” foram, no âmbito do planejamento das cidades, empregados pioneiramente durante a segunda metade do século XIX por Ildefonso Cerdà. Debrassi (2006, p. 14), convergentemente, cita a “Teoria Geral da Urbanização de Cerdà”, publicada durante a década de 1860, como marco documental da constituição do campo de saber “urbanismo” enquanto teoria científica. Essa autora (DEBRASSI, 2006, p. 14), qualificando sinteticamente esse campo de saber, relata que essa teoria possui caráter interdisciplinar composto pelo “entrecruzamento de princípios éticos (...) e de noções mais ou menos precisas da medicina, economia, arquitetura, sociologia e história”. Choay (1980, p. 3) também localiza a criação desse termo “urbanismo” nessa obra “Teoria Geral da Urbanização de Cerdà”. Essa autora (CHOAY, 1980, p. 1-2) observa, além, que estão “submetidos à hegemonia da disciplina denominada urbanismo” a arquitetura de edifícios e as relações que esses edifícios mantêm entre si e com o entorno. Para Zevi (1984, p. 42), “a realidade do espaço urbanístico não se concretiza em torno de um único edifício, mas nos vazios limitados por todos os elementos murais e naturais que o definem”.

Práticas de planejamento urbano e de materialização do meio ambiente urbano, todavia, antecedem o século XIX. Choay (1980, p. 16) afirma que “os próprios historiadores do século XX não hesitam em falar de ‘urbanismo’ grego e romano, quando querem designar ordenamentos urbanos cuja racionalidade testemunha claramente uma reflexão específica”.

Entendo que o urbanismo, não se limitando à caracterização geométrica e locacional dos espaços que compõem as cidades, é uma ciência social atravessada por diversas ciências e diversos domínios de conhecimento. O urbanismo também se denomina ciência urbanística e consiste numa ciência social aplicada à compreensão, ao estudo e à elucidação de assuntos relacionados aos espaços urbanos, considerando-se necessariamente interações e entrelaçamentos com espaços arquitetônicos. Tendo sua existência detectada ao longo de séculos e, mesmo, de milênios, o urbanismo não é uma ciência plenamente descortinada e livre de mistérios. Pessoas evoluem, comunidades evoluem, as ciências também evoluem.

 

Referências bibliográficas:

CERDÀ, I.. Teoria general de la urbanización, y aplicación de sus principios y doctrinas a la reforma y ensanche de Barcelona. Imprenta Española, 1867.

CHING, F. D. K., ECKLER, J. F.. Introdução à arquitetura. 1. ed.. Trad. Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman Editora, 2014. 421 p. Título original em inglês: Introduction to Architecture.

CHOAY, F.. A regra e o modelo: sobre a teoria da arquitectura e do urbanismo. 2 ed., 1980. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985. 334 p. Título original em francês: La règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme.

DEBRASSI, T. M. F. B.. Paradigmas e teorias da cidade: das reformas urbanas ao urbanismo contemporâneo - o caso de Barcelona. 2006. 206 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, 2006.

HERTZBERGER, H.. Lições de Arquitetura. 1. ed. 1991. Trad. Eduarado Lima Machado. 3. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015. 272 p. Título original em inglês: Lessons for Studentes in Architeture.

LIMA, J. A. de A.. Urbanismo como ciência, técnica e arte: sua política e sua proteção legal. Arquitextos. São Paulo, ano 03, ago. 2002. Disponível em < https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitetxtos/03.027/760 >. Acesso em 04/08/2020. Acesso em: 01 jun. 2019. ISSN 1809-6298.

ZEVI, B.. Saber ver a arquitetura. 6. ed., 1984. Trad. Maria Isabel Gaspar, Gaëtan Martins de Oliveira. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2009. 286 p. Título original em italiano: Saper Vedere L’architettura.


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